Velho, não.
Entardecido, talvez
Antigo, sim
Me tornei antigo
Porque a vida,
Tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
Como um rio aguarda a cheia
Mia Couto
Envelhecer faz parte da
vida, é um processo de mudança pelo qual todos os seres passam. Vemos o
envelhecimento em quase tudo ao nosso redor. Cães e gatos em nossas casas,
pássaros no céu, peixes no mar, árvores nas florestas, conhecidos em asilos e
nós mesmos em frente ao espelho do banheiro. Esta pessoa que enxergo no
espelho, de cara lavada e sem nenhuma maquiagem é a pessoa com quem me deito
todas as noites. E gosto dela cada vez mais.
Alguns levam a idade
demasiado a sério e utilizam as rugas e os cabelos grisalhos como esconderijo
para se paralisarem em suas memórias e queixas. Comigo não é assim, ainda sou
um menino que já viveu setenta anos ou mais.
O numero que aparece no
documento de identidade reflete a idade do corpo, não da alma. Nem do
conhecimento, sequer dos sonhos, tampouco das emoções ou dos afetos. O corpo
parte na frente da alma em termos de envelhecimento. Alma não envelhece, não se
restringe a tempo ou números. Permanece com o humor dos dez, o viço dos vinte e
o erotismo dos trinta anos. Alma é atemporal.
A idade é engraçada,
tira-nos por fora o que nos dá por dentro. Vamos mudando a pele e
gradativamente perdendo massa muscular, estatura, lábios e cabelos. No entanto
ficamos muito mais sensíveis interiormente.
Então acordamos pela
manha, olhamos a imagem no espelho e nos espantamos, não acreditamos que
aquelas almas-criança com brilhos nos olhos, que dormiram sonhando com a beleza
dos reinos encantados são os corpos envelhecidos que agora estão a nossa frente
encarando-nos. Aqueles velhos não somos nós, alguma coisa está errada. Um
paradoxo da vida.
Restam-nos duas
escolhas: aceitar a realidade e se adaptar ou reformar o corpo para que se
pareça com aquilo que a alma sente. A maioria das pessoas escolhe a última
opção. Comigo não foi diferente, mas a vida me mostrou que ela segue
acontecendo nos detalhes, nos desvios e nas alterações de rota que podem nos
surpreender.
A mesma sociedade que
busca a longevidade gera o horror ao envelhecimento. Assustei-me quando
surgiram os primeiros fios de cabelo branco, era um sinal evidente de velhice. Estava
enganado. Comecei a envelhecer mesmo só no momento em que me preocupei em
escondê-los. Rejuvenesci quando relaxei e deixei os grisalhos crescerem natural
e desalinhadamente por cima das orelhas.
Pensava que depois de
ficar viúvo, a vida não seria mais a mesma e jamais seria feliz de novo.
Sobrevivia de saudade, sofrimento e recordações. Por fora já havia desistido,
mas por dentro ainda havia uma desculpa para recomeçar. Um dia Juliana surgiu e
me devolveu o amor e a juventude. Dizem que o homem tem a idade da mulher que
está a seu lado. E vice versa. Segundas chances são reais.
Achava que ser avô
seria o atestado incontestável de velhice. Com o nascimento do primeiro neto,
ganhei um novo motivo para sorrir e me emocionar. Posso até dizer que nasci de
novo e voltei a infância em viagem de primeira classe. Brincamos quase todos os
dias na pracinha do bairro e me renovo a cada castelo que construímos na areia.
Achava-me muito velho
para mexer nestas coisas de computador e internet. Meus olhos não davam conta
daquelas letras tão pequenas. Ao envelhecer a visão piora, porém podemos
enxergar mais longe. Um par de óculos novos resolveu o problema. Atualmente tenho
amigos de todas as idades em quase todas as mídias sociais e me atrevo a postar
meus escritos sem receio de ser chamado de velho gagá.
Hoje sei que não é um
número que vai dizer se sou velho ou novo demais. É minha mente quem decide a
idade que tenho. O envelhecimento da alma depende do consentimento de quem a
possui. Não conto mais a idade em anos, contabilizo momentos, faço valer cada
segundo. A eternidade é feita de agoras e é tão relativa que às vezes dura o
tempo de um abraço, o que vale é a intensidade do instante. Viver é saltar no
escuro do não saber. Não quero viver sem arrependimentos, prefiro escolher o
arrependimento certo.
O sonho da humanidade
sempre foi a imortalidade. Em seu poema épico Odisséia, Homero narra as
aventuras do herói Ulisses tentando voltar para casa após dez anos lutando na
Guerra de Tróia. Quando seu barco naufraga, só ele sobrevive. Foi parar na ilha
de Ogigia e lá encontrou a bela ninfa Calipso, que o seduziu oferecendo dois
presentes para que ficasse com ela para sempre: imortalidade e eterna
juventude. Quem de nós resistiria em aceitar uma oferta dessa ordem?
Temos medo de morrer
porque temos medo de não ter vivido suficientemente. Ulisses se encantou com a
idéia de vencer a morte e sem muito pensar, aceitou a proposta. Depois de um
tempo, passou a chorar dia após dia junto ao mar. Sonhava em regressar para sua
casa, não esquecia sua pátria, sua fiel esposa Penélope, seu filho Telêmaco. Queria estar de novo com seus amigos, sua
família, sua terra. Depois de sete anos preso e amargurado, foi libertado e
conseguiu retornar, trocando a eterna juventude pela volta ao lar.
Estamos conseguindo
reformar nossos corpos por dentro e por fora. A tecnologia e a medicina
possibilitaram retardar o envelhecimento. A expectativa de vida aumenta a cada
ano. Num futuro não muito distante, seremos fisicamente saudáveis até os cento
e vinte anos. Ou talvez mais. Caberá então a nós, buscarmos o que Ulisses escolheu
fazer em sua Odisséia: achar um sentido para a vida que ainda temos pela frente
e sermos gratos e felizes.
Um bom cirurgião pode
sumir com as incômodas rugas, mas não consegue resgatar o brilho de um olhar
perdido na solidão da velhice. Um dia seremos apenas fotos, mas enquanto esse
dia não chega, desejo levar uma vida que
me dê saudades e uma velhice que me permita sentir cada uma delas. Quero deixar
saudades e não heranças. Nem flor, nem semente, agora quero ser terra fértil
que cria, destrói, reconstrói, ensina e engrandece. Meu futuro ainda precisa muito
de mim.
Envelhecer é um
processo extraordinário onde cada um tem a própria chance de, sem pressa, ir ao
encontro daquilo que antes fugia e, quem sabe, se tornar a pessoa que sempre
deveria ter sido. Tudo que curamos em nós, protege nossos descendentes.