sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

A verdade nunca mata


Conheci Pedro no hospital. Internou-se com uma forte dor nas costas. Era um homem com seus cinquenta anos de idade, casado, aparentemente sadio. Bem sucedido profissionalmente, praticava esportes, tinha vida regrada e não fazia uso de medicamento algum. Aquela dor não parecia estar relacionada com  mau jeito ou traumatismo. Havia algo de estranho.

Prescrevi alguns analgésicos que aliviaram seu sofrimento, mas era preciso investigar a origem da dor. Depois de alguns exames o diagnóstico parecia ser de um câncer no pâncreas com metástases para a coluna. O prognóstico dessa doença é muito ruim, meses de vida. Era preciso que tanto ele como a família fossem informados.

Aprendi na faculdade de Medicina que se deve explicar aos poucos a gravidade de uma doença terminal. Recomenda-se ir preparando o paciente para o choque, respondendo as dúvidas conforme vão surgindo.  Na faculdade de Filosofia me ensinaram um pouco diferente. Dizer a verdade não mata, o que mata mesmo é a doença e o paciente tem o direito de saber tudo que está acontecendo. Nunca é fácil essa missão, mas alguém precisa executá-la.

- Pedro, precisamos conversar, Já sei por que você está com essa dor.

- Que bom doutor, assim vamos nos ver livres dela.

- Não vai ser tão simples, mas temos como tratá-la.

- Ótimo, quanto tempo ainda vou precisar ficar aqui no hospital?

- Pedro, sua dor é derivada de um tumor no pâncreas, precisamos investigar um pouco mais, mas é urgente iniciarmos o tratamento.

- Tem certeza doutor? Nunca senti nada, deve ser um erro do diagnóstico.  Que tipo de tumor é esse no pâncreas?

- Vou marcar uma biópsia para sabermos se é benigno ou maligno, mas você tem um tumor no pâncreas, disso tenho certeza, e que é preciso iniciar o tratamento também posso lhe garantir.

- Então é grave. Vou morrer doutor?

- Depois da biópsia vou poder lhe responder com mais precisão, mas fique tranquilo, a medicina está bem evoluída para tratar esse tipo de problema. Em poucos dias saberemos tudo.

A conversa havia sido em particular, sem presença de familiares, mas logo em seguida já recebi um telefonema da esposa chorosa querendo saber mais detalhes.

- O diagnóstico é esse mesmo, mas não posso lhe adiantar mais nada. Seria precipitado fazer algum prognóstico antes da biópsia. Fique tranquila, vou acompanhar seu marido de perto e não vou deixá-lo sofrer. Indicaremos as melhores e mais modernas terapias para curá-lo.

É difícil transmitir com palavras e por mais que me esforce, talvez não consiga fazer o leitor sentir quão difícil e doloroso é olhar nos olhos de um paciente terminal e comunicar que ele pode morrer muito em breve. Tentem imaginar a relação que se estabelece nessa situação. Um misto de incredulidade e fé num clima de negação, dependência, silêncio e por vezes agressão. Nunca se sabe qual a reação a ser desencadeada depois de se transmitir um prognóstico fatal. Uma coisa é certa, o momento em que se recebe uma noticia grave nunca é esquecido. É preciso estar preparado para este tipo de conversa.

O diagnóstico de câncer de pâncreas foi confirmado e, mais uma vez, tive de encarar a penosa e amarga tarefa de sentar com Pedro, vislumbrar seus olhos esperançosos por uma boa noticia murcharem e se afogarem em lágrimas de tristeza que  escorriam sem parar.

- Vou morrer doutor?

- É cedo para pensar nisso. Existem várias alternativas de tratamento, mas temos que iniciar logo com uma quimioterapia para reduzirmos o tamanho do tumor.

- Não dá pra tirar ele inteiro?

- Não, o que podemos fazer é reduzir seu tamanho e ficarmos controlando.

- Vou perder cabelo, emagrecer?

- Sim, mas dor não vai mais sentir.

- Quando começamos?

- Amanhã ou depois, depende do resultado de alguns exames.

A quimioterapia funcionou bastante bem, Pedro voltou para casa super agradecido, no entanto sabia que não estava curado. Havia uma bomba relógio dentro de seu corpo que não foi desativada, poderia explodir a qualquer momento. Alguns pacientes levam para o lado da tragédia, outros ignoram a bomba. Pedro fez de conta que tudo aquilo fora um pesadelo. Dizia que se não olhasse para a morte, ela não o veria. Se não pensasse na morte, ela não existiria.  Vida que segue.

E a vida seguiu, mas não do jeito que Pedro imaginava. A bomba foi acionada de novo e dessa vez, com mais explosivos. Metástases se espalharam pelo pulmão e ossos. Sugerimos então uma viagem aos Estados Unidos onde poderia tentar uma terapia experimental com um novo medicamento. Ainda restava uma esperança, embora soubéssemos ser algo ainda em testes sem comprovação efetiva de resultados.

A família estava animada, afinal os Estados Unidos sempre foram considerados o primeiro mundo em medicina, lá haveriam de lhe devolver a vida. A alegria durou pouco, os médicos não indicaram o tratamento, pois ele não se encaixava nos protocolos do experimento. Alegaram que tudo aquilo que a medicina dos homens poderia fazer já havia sido feito e que ele estava em ótimas mãos aqui no Brasil.

- Aqueles médicos são uns urubus, já me enterraram vivo. Pedro zangado me falou ao telefone.

- Calma, Pedro, quando você chegar aqui vamos tratar disso. Os médicos podem dizer qual medicamento você deve tomar, qual cirurgia precisa realizar, mas não lhes foi dado o poder de prever quanto tempo alguém vai viver ou quando vai morrer. Isso não está no controle deles. Volte aqui que vou lhe contar algumas outras coisas.

Depois dessa malograda viagem aos Estados Unidos, Pedro começou a decair fisicamente, no entanto, intelectualmente parecia estar se elevando. Em alguns casos, a medida que as pessoas vão se despedindo da existência na terra e subindo aos céus, crescem espiritualmente, descortina-se uma visão do invisível, iluminando-os de lucidez.

O corpo definhava, a mente expandia. Trabalhava como nos velhos tempos, tinha disposição para fazer novos projetos, planejar viagens, freqüentar festas. Confessou-me que fazia um esforço sobre-humano para parecer bem. Aquilo era um teatro, uma fantasia. Parecia que negava a gravidade da doença, mas na verdade estava muito consciente de seu futuro, só estava poupando a família de pensar e conversar sobre sua situação delicada.  Não queria que percebessem sua fraqueza nem tivessem pena de sua aflição.

Médicos são treinados para salvar vidas, não para deixar as pessoas morrerem. Quando se encontram frente a frente com um paciente terminal não sabem como lidar, não possuem treinamento, sequer habilidade de conduzir esse tempo sagrado da vida humana.  A salvação de uma vida vai muito além de remédios ou cirurgias. Muita gente se cura de um câncer, mas sente-se  infeliz estando viva. Zumbis existenciais. Pedro sabia que estava morrendo, mas queria permanecer vivo até o dia em que partisse. Enquanto não morresse, não queria morrer.

Além de tentar manter sua imagem de homem saudável, Pedro em segredo procurava milagres em curandeiros, igrejas, promessas mirabolantes, terapias alternativas. Conversávamos bastante sobre Deus e o sentido da vida.

- Pedro, por que você não volta para casa e fica descansando por lá? Não é mais necessário ficar aqui no hospital. Cuidarei de você em casa. Podemos montar um esquema com analgésicos e fisioterapia para que tenha uma vida bem confortável por lá. Você terá seus travesseiros, cobertores, livros. Seus amigos ficarão mais à vontade para visitá-lo, seu cão vai poder dormir com você.

- Não quero que os amigos, vizinhos ou porteiros do prédio saibam que estou doente. Não quero que vejam ambulâncias entrando e saindo. Mais do que isso, não quero morrer em casa. Minha esposa não vai mais conseguir dormir em nossa cama, minha filha não vai mais conseguir entrar em meu quarto. Talvez nem consigam mais morar lá.

- Você já conversou com eles sobre isso?

- Nem pensar doutor, não vou falar em morrer com eles. Posso lhe pedir um favor?

- Claro!

- É meio complicado, constrangedor e até um pouco maluco, doutor, mas só posso pedir isso ao senhor.

- Fale Pedro, não fique me enrolando.

- Eu não gostaria que soubessem que morri de câncer. Não queria ir embora com esta coisa ruim em meu corpo. Será que não existe a possibilidade de convencer minha família de que morri por outra causa? O senhor diria que eu estava bem, milagrosamente me recuperando. De minha parte, eu manteria o blefe atuando como o Pedro forte e, dentro do possível, saudável e então, de repente, algo de  errado aconteceria. Uma medicação causando efeito indesejado, talvez uma enfermeira injetando outra medicação por descuido, uma parada cardíaca súbita. Algo desse tipo. Assim eu partiria, mas não por câncer. O destino é que se encarregou de me levar. Prometo-lhe que deixarei um documento isentando-os de qualquer responsabilidade caso a família queira entrar com um processo judicial. 

Não foi preciso mentir, ou esconder a verdade de Pedro, a vida lhe mostrou seus desígnios. Depois de tanto sofrimento, compreendeu seus limites e aceitou sua morte, mas não sem ressalvas. Não estava mais preocupado com sua saúde ou a situação financeira da família, cuidava agora da saúde emocional dos que ficavam. Queria partir em paz, mas não sabia como morrer. Queria partir limpo de corpo e alma. Ás vezes a cura de uma doença, o verdadeiro milagre da vida é o falecimento em paz.

  

 

 

Um comentário:

  1. Bela reflexão!
    Como dizia Saramago: " Não há o que não haja."
    No último dia do ano de 2022, meu irmão despediu-se desta vida. Uma morte anunciada e parece-me, planejada por ele mesmo. Os questionamentos são muitos, pois nada podemos fazer para ajudar aqueles que desistem de viver, mesmo que tenham obtido o diagnóstico da dita da cura. A vida para alguns é uma passagem com tempo determinado por eles mesmos.

    ResponderExcluir