Conheci Pedro no hospital.
Internou-se com uma forte dor nas costas. Era um homem com seus cinquenta anos
de idade, casado, aparentemente sadio. Bem sucedido profissionalmente,
praticava esportes, tinha vida regrada e não fazia uso de medicamento algum. Aquela
dor não parecia estar relacionada com mau jeito ou traumatismo. Havia algo de
estranho.
Prescrevi alguns analgésicos que aliviaram seu sofrimento, mas era preciso investigar a origem da dor. Depois de alguns exames o diagnóstico parecia ser de um câncer no pâncreas com metástases para a coluna. O prognóstico dessa doença é muito ruim, meses de vida. Era preciso que tanto ele como a família fossem informados.
Aprendi na faculdade de Medicina
que se deve explicar aos poucos a gravidade de uma doença terminal.
Recomenda-se ir preparando o paciente para o choque, respondendo as dúvidas
conforme vão surgindo. Na faculdade de
Filosofia me ensinaram um pouco diferente. Dizer a verdade não mata, o que mata
mesmo é a doença e o paciente tem o direito de saber tudo que está acontecendo.
Nunca é fácil essa missão, mas alguém precisa executá-la.
- Pedro, precisamos
conversar, Já sei por que você está com essa dor.
- Que bom doutor, assim
vamos nos ver livres dela.
- Não vai ser tão simples,
mas temos como tratá-la.
- Ótimo, quanto tempo ainda
vou precisar ficar aqui no hospital?
- Pedro, sua dor é derivada
de um tumor no pâncreas, precisamos investigar um pouco mais, mas é urgente
iniciarmos o tratamento.
- Tem certeza doutor? Nunca
senti nada, deve ser um erro do diagnóstico.
Que tipo de tumor é esse no pâncreas?
- Vou marcar uma biópsia
para sabermos se é benigno ou maligno, mas você tem um tumor no pâncreas, disso
tenho certeza, e que é preciso iniciar o tratamento também posso lhe garantir.
- Então é grave. Vou morrer
doutor?
- Depois da biópsia vou
poder lhe responder com mais precisão, mas fique tranquilo, a medicina está bem
evoluída para tratar esse tipo de problema. Em poucos dias saberemos tudo.
A conversa havia sido em
particular, sem presença de familiares, mas logo em seguida já recebi um
telefonema da esposa chorosa querendo saber mais detalhes.
- O diagnóstico é esse
mesmo, mas não posso lhe adiantar mais nada. Seria precipitado fazer algum prognóstico
antes da biópsia. Fique tranquila, vou acompanhar seu marido de perto e não vou
deixá-lo sofrer. Indicaremos as melhores e mais modernas terapias para curá-lo.
É difícil transmitir com
palavras e por mais que me esforce, talvez não consiga fazer o leitor sentir
quão difícil e doloroso é olhar nos olhos de um paciente terminal e comunicar
que ele pode morrer muito em breve. Tentem imaginar a relação que se estabelece
nessa situação. Um misto de incredulidade e fé num clima de negação,
dependência, silêncio e por vezes agressão. Nunca se sabe qual a reação a ser
desencadeada depois de se transmitir um prognóstico fatal. Uma coisa é certa, o
momento em que se recebe uma noticia grave nunca é esquecido. É preciso estar
preparado para este tipo de conversa.
O diagnóstico de câncer de
pâncreas foi confirmado e, mais uma vez, tive de encarar a penosa e amarga
tarefa de sentar com Pedro, vislumbrar seus olhos esperançosos por uma boa
noticia murcharem e se afogarem em lágrimas de tristeza que escorriam sem parar.
- Vou morrer doutor?
- É cedo para pensar nisso.
Existem várias alternativas de tratamento, mas temos que iniciar logo com uma
quimioterapia para reduzirmos o tamanho do tumor.
- Não dá pra tirar ele
inteiro?
- Não, o que podemos fazer é
reduzir seu tamanho e ficarmos controlando.
- Vou perder cabelo,
emagrecer?
- Sim, mas dor não vai mais
sentir.
- Quando começamos?
- Amanhã ou depois, depende
do resultado de alguns exames.
A quimioterapia funcionou
bastante bem, Pedro voltou para casa super agradecido, no entanto sabia que não
estava curado. Havia uma bomba relógio dentro de seu corpo que não foi
desativada, poderia explodir a qualquer momento. Alguns pacientes levam para o
lado da tragédia, outros ignoram a bomba. Pedro fez de conta que tudo aquilo fora
um pesadelo. Dizia que se não olhasse para a morte, ela não o veria. Se não
pensasse na morte, ela não existiria. Vida que segue.
E a vida seguiu, mas não do
jeito que Pedro imaginava. A bomba foi acionada de novo e dessa vez, com mais
explosivos. Metástases se espalharam pelo pulmão e ossos. Sugerimos então uma
viagem aos Estados Unidos onde poderia tentar uma terapia experimental com um
novo medicamento. Ainda restava uma esperança, embora soubéssemos ser algo
ainda em testes sem comprovação efetiva de resultados.
A família estava animada,
afinal os Estados Unidos sempre foram considerados o primeiro mundo em medicina,
lá haveriam de lhe devolver a vida. A alegria durou pouco, os médicos não
indicaram o tratamento, pois ele não se encaixava nos protocolos do
experimento. Alegaram que tudo aquilo que a medicina dos homens poderia fazer
já havia sido feito e que ele estava em ótimas mãos aqui no Brasil.
- Aqueles médicos são uns
urubus, já me enterraram vivo. Pedro zangado me falou ao telefone.
- Calma, Pedro, quando você
chegar aqui vamos tratar disso. Os médicos podem dizer qual medicamento você
deve tomar, qual cirurgia precisa realizar, mas não lhes foi dado o poder de
prever quanto tempo alguém vai viver ou quando vai morrer. Isso não está no
controle deles. Volte aqui que vou lhe contar algumas outras coisas.
Depois dessa malograda
viagem aos Estados Unidos, Pedro começou a decair fisicamente, no entanto,
intelectualmente parecia estar se elevando. Em alguns casos, a medida que as
pessoas vão se despedindo da existência na terra e subindo aos céus, crescem
espiritualmente, descortina-se uma visão do invisível, iluminando-os de lucidez.
O corpo definhava, a mente
expandia. Trabalhava como nos velhos tempos, tinha disposição para fazer novos
projetos, planejar viagens, freqüentar festas. Confessou-me que fazia um
esforço sobre-humano para parecer bem. Aquilo era um teatro, uma fantasia. Parecia
que negava a gravidade da doença, mas na verdade estava muito consciente de seu
futuro, só estava poupando a família de pensar e conversar sobre sua situação
delicada. Não queria que percebessem sua
fraqueza nem tivessem pena de sua aflição.
Médicos são treinados para
salvar vidas, não para deixar as pessoas morrerem. Quando se encontram frente a
frente com um paciente terminal não sabem como lidar, não possuem treinamento,
sequer habilidade de conduzir esse tempo sagrado da vida humana. A salvação de uma vida vai muito além de
remédios ou cirurgias. Muita gente se cura de um câncer, mas sente-se infeliz estando viva. Zumbis existenciais.
Pedro sabia que estava morrendo, mas queria permanecer vivo até o dia em que
partisse. Enquanto não morresse, não queria morrer.
Além de tentar manter sua
imagem de homem saudável, Pedro em segredo procurava milagres em curandeiros,
igrejas, promessas mirabolantes, terapias alternativas. Conversávamos bastante
sobre Deus e o sentido da vida.
- Pedro, por que você não
volta para casa e fica descansando por lá? Não é mais necessário ficar aqui no
hospital. Cuidarei de você em casa. Podemos montar um esquema com analgésicos e
fisioterapia para que tenha uma vida bem confortável por lá. Você terá seus
travesseiros, cobertores, livros. Seus amigos ficarão mais à vontade para
visitá-lo, seu cão vai poder dormir com você.
- Não quero que os amigos, vizinhos
ou porteiros do prédio saibam que estou doente. Não quero que vejam ambulâncias
entrando e saindo. Mais do que isso, não quero morrer em casa. Minha esposa não
vai mais conseguir dormir em nossa cama, minha filha não vai mais conseguir
entrar em meu quarto. Talvez nem consigam mais morar lá.
- Você já conversou com eles
sobre isso?
- Nem pensar doutor, não vou
falar em morrer com eles. Posso lhe pedir um favor?
- Claro!
- É meio complicado, constrangedor
e até um pouco maluco, doutor, mas só posso pedir isso ao senhor.
- Fale Pedro, não fique me
enrolando.
- Eu não gostaria que
soubessem que morri de câncer. Não queria ir embora com esta coisa ruim em meu
corpo. Será que não existe a possibilidade de convencer minha família de que morri
por outra causa? O senhor diria que eu estava bem, milagrosamente me recuperando.
De minha parte, eu manteria o blefe atuando como o Pedro forte e, dentro do
possível, saudável e então, de repente, algo de
errado aconteceria. Uma medicação causando efeito indesejado, talvez uma
enfermeira injetando outra medicação por descuido, uma parada cardíaca súbita. Algo
desse tipo. Assim eu partiria, mas não por câncer. O destino é que se
encarregou de me levar. Prometo-lhe que deixarei um documento isentando-os de
qualquer responsabilidade caso a família queira entrar com um processo
judicial.
Não foi preciso mentir, ou
esconder a verdade de Pedro, a vida lhe mostrou seus desígnios. Depois de tanto
sofrimento, compreendeu seus limites e aceitou sua morte, mas não sem
ressalvas. Não estava mais preocupado com sua saúde ou a situação financeira da
família, cuidava agora da saúde emocional dos que ficavam. Queria partir em
paz, mas não sabia como morrer. Queria partir limpo de corpo e alma. Ás vezes a
cura de uma doença, o verdadeiro milagre da vida é o falecimento em paz.
Bela reflexão!
ResponderExcluirComo dizia Saramago: " Não há o que não haja."
No último dia do ano de 2022, meu irmão despediu-se desta vida. Uma morte anunciada e parece-me, planejada por ele mesmo. Os questionamentos são muitos, pois nada podemos fazer para ajudar aqueles que desistem de viver, mesmo que tenham obtido o diagnóstico da dita da cura. A vida para alguns é uma passagem com tempo determinado por eles mesmos.