quarta-feira, 19 de maio de 2021

Desencontros que aproximam


Que casal lindo, como se conheceram?

Na verdade ainda não nos conhecemos direito, estamos em processo de conhecimento um do outro. Pedimos até ajuda para um terapeuta. Vamos juntos lá uma vez por semana. Conversamos, contamos o que rola no dia a dia, dúvidas, desconfortos, expectativas, então ele tenta traduzir e simplificar o que não entendemos ou não sentimos adequadamente em relação a nós mesmos e ao outro. Estamos gostando da experiência de nos conhecermos com suporte profissional qualificado. É um aprendizado terceirizado.

Entendo, vou modificar a pergunta. Como se encontraram?

Trabalhamos no mesmo hospital. Sou médico anestesiologista, ela enfermeira. Por vezes somos escalados para atuar na mesma sala de cirurgia. Numa destas ocasiões, ao quebrar uma ampola de medicamento, cortei a mão. Sangrava muito. Ela prontamente veio em meu socorro com gazes, água oxigenada, álcool, ataduras. Segurou minha mão com firmeza, estancou a hemorragia e fez um belo curativo.

Perguntei a ela se quando a mão ficasse boa poderia segurar sua mão novamente com mais carinho e menos ansiedade para agradecer o atendimento. Ela respondeu com um sorriso e um piscar de olhos. Ali nos encontramos. Roubei um sorriso e ela me prendeu com uma atadura. Nossas mãos nunca mais se separaram.

domingo, 2 de maio de 2021

Não adianta nem tentar me esquecer

 Esta semana perdi mais uma amiga para a Covid. Cuidava-se bastante até que num maldito dia se contaminou. Começou com tosse, febre e em seguida falta de ar. Precisou ser internada na UTI e logo em seguida entubada. A partir daí, o único contato que a família conseguia era uma curta mensagem diária do médico plantonista às 16 horas onde comunicava a evolução do quadro clínico.

Durante trinta e dois dias mensagens técnicas dizendo que a febre havia baixado, os rins não estavam funcionando direito, a oxigenação havia piorado, contraíra uma pneumonia, até o fatídico dia em que comunicaram que não resistiu e partiu para uma outra existência. Morte solitária, cruel, patética, num penoso e frigido leito hospitalar. 

Trinta e cinco dias antes dessa tragédia, conversávamos ao telefone, trocávamos mensagens, fazíamos planos para o término da pandemia. Agora ela não está mais aqui, virou cinzas. E nem conseguimos nos despedir. Não lhe foi permitido dizer adeus. Não me foi concedido um último abraço. Senti como se inesperadamente tivessem  me arrancado um pedaço, um braço, uma perna, uma orelha, uma parte do coração. Não foi só ela quem morreu, uma porção de mim partiu junto com ela.

Não só com pessoas acontecem essas doenças terminais, alguns relacionamentos patológicos também acabam na UTI, permanecem em coma afetivo sem comunicação durante anos, sustentados pela ilusão de uma ressuscitação, até que num bem ou mal aventurado dia se desligam. Com ou sem sofrimento, velório ou missa de sétimo dia. Essas mortes simbólicas podem ser mais difíceis de lidar que a morte real. Na morte real não há dúvida, na simbólica ainda há algo vivo.