quinta-feira, 29 de julho de 2010

O OLHAR QUE BEIJA

O poder da mídia é inquestionável e ao mesmo tempo assustador. Através de mensagens diretas ou subliminares, recebemos em média trezentas sugestões diárias de como tornar nossa vida melhor e sermos mais felizes. Quase todas indicando dois endereços bem pontuais: consumo e beleza física. Quanto maior a capacidade de consumo e proximidade da perfeição estética, maior também será o grau de satisfação pessoal e a admiração dos outros. Certo ou errado? A pretensão aqui não é entrar no mérito dessa discussão, apenas comentar as implicações desses comportamentos nas relações afetivas.

Uma mentira repetida mil vezes pode acabar parecendo verdade. Depois de bombardear o público durante um mês com o comercial do pop-star vendendo determinado produto ou estilo de vida, a mensagem acaba sendo assimilada e o desejo de compra passa a ser uma consequência lógica. É mais ou menos assim que somos induzidos à mudança de hábitos ou comportamentos.

Quase tudo nos é oferecido de maneira instantânea, com promessa de satisfação imediata. Cada vez mais as pessoas utilizam seu tempo livre para navegar em sítios de compras, de sexo explicito, salas de bate-papo, interagindo apenas virtualmente. Um olho no monitor e outro no teclado, buscando o imediatismo, o já, o agora.
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Esta instantaneidade invadiu também as relações afetivas, uma vez que a escolha do sujeito da cobiça amorosa tem se restringido a um simples passar de olhos, um relance, com vista apenas, na maioria das vezes, em patrimônio, medidas de busto, coxa e quadril.

Um outro tipo de olhar foi esquecido. Aquele olhar que não tem pressa, porque sabe que vai precisar de tempo para atravessar a retina, sondar a alma, devassar os segredos, deixar seu recado e buscar o brilho ou a escuridão do retorno. Enquanto a pupila de um vai pedindo licença, a do outro vai dilatando, e vão se deixando conhecer, abrindo passagem, esquentando, querendo, gostando, encaixando. E ‘clac’.

Sustentar o olhar do outro não é para qualquer um, ou quaisquer dois. É preciso parceria, a verdade de um olhar encontrando eco na verdade do outro, e novamente refletindo para dentro de cada um.

Notem como hoje se tornou mais fácil beijar, tirar a roupa, se deixar tocar, ficar, comprar, viajar, fazer cirurgia plástica do que sustentar por mais de dez segundos o olhar de alguém. Ao que tudo indica, nesta nova ordem da instantaneidade e felicidade comprada, pode-se adquirir, mostrar e tocar quase tudo, menos o olhar.

Qual seria, então, a parte mais sedutora e, se tivesse preço, mais cara do ser humano hoje em dia? Sem dúvida que seriam os olhos. Aquele olhar de quem se entrega, conseguindo assim falar melhor que a boca, escutar além das palavras, sentir acima e abaixo da pele e enxergar bem mais que as aparências. Quando esse brilho atinge o outro, é chegada a hora de fechar as pálpebras e deixar que os lábios se busquem, para de outra forma enxergar o que os olhos já haviam visto.

Beijar sem antes olhar fundo é como comprar no escuro. É um beijo roubado. Beijar com a luz apagada, então, é um assalto. Beijar de olhos fechados só tem sentido se antes houver o espelhamento das retinas. Encarar antes e depois de um beijo é um prazer tão grande, que talvez palavras não consigam expressar, mas chega a ser melhor que o próprio beijo. Enfim, acertar o foco é uma questão de tempo, direcionamento do olhar e mais do que tudo, vontade de enxergar e se ver ao mesmo tempo.

Artigo escrito em parceria com Maria Janice Vianna - www.humanamania.blogspot.com

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terça-feira, 6 de julho de 2010

Quando a emoção falou mais alto

Cada vez que chegava na casa de meu amigo, era recebido antes mesmo de tocar a campainha, pelos latidos do Borg, que completava sua alegre recepção com lambidas, rabo abanando, "abraços" com patas enormes e embarradas. Todas as demonstrações de afeto. Foi assim desde sempre, desde o final da adolescência até a idade adulta, quando a vida nos afastou.
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Dia desses reencontro meu amigo, e entre abraços e trocas de telefone vieram as perguntas tradicionais sobre a família, pais, filhos, a vida em geral... e não pude deixar de perguntar sobre o Borg ... na hora parecia que eu estivera há apenas alguns dias em sua casa. Relembramos acontecimentos, aventuras, namoradas e as tardes que passávamos com Borg passeando pelo parque, atraindo a atenção das meninas. Fiquei chocado ao saber que ele estava com a saúde debilitada, em "estado terminal". Meu amigo estava em dúvidas sobre sacrificar nosso companheiro ou deixá-lo viver até o final e quis saber minha opinião.
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Pensei um pouco no Borg, nos velhos tempos e me veio a cabeça uma antiga piada. Quer saber quem gosta mais de você, seu cão ou seu companheiro(a)? Tranque os dois no porta-malas de seu carro por trinta minutos e depois os solte, você verá quem vai lhe lamber e quem vai lhe morder. Cães são conhecidos como os melhores amigos do homem e de uma fidelidade eterna. Tenho uma teoria que sei ser controversa, mas afinal de contas, ainda bem que hoje temos a liberdade de pensamento e expressão.
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Acredito que os cães são portadores dessa fidelidade porque não possuem a capacidade de pensar, funcionam através de reflexos condicionados. Se o cão pensasse como um humano, ficaria querendo saber por que foi trancado no porta-malas e exigiria uma explicação; mas ao contrário, seu instinto diz apenas que ao avistar seu dono ele deve ficar alegre, pois o mesmo vai lhe dar carinho ou alimento.
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Cada vez que o dono aparece, o cão fica feliz, e quando o dono parte, o cão entristece, sem grandes viagens intelectuais. Animais não conseguem fazer deslocamentos longos com o pensamento, não têm noção de finitude, de amanhã, de relacionamento a longo prazo. Precisam satisfazer suas necessidades básicas: alimento, frio, carinho, sexo, dor...E o drama do Borg, seu sofrimento maior é a dor contínua e profunda, que seria aliviada com sua morte, nem percebendo que a vida para ele acabou. Quem ficaria pensando no Borg seríamos nós, humanos, que pensamos e sentimos a longo prazo.
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Expus minha opinião e me ofereci para acompanhar o Borg na dolorosa despedida. Até aqui, a razão e a teoria estavam comandando o espetáculo, ou melhor, o funeral. Acontece que ao chegar na casa de meu amigo, fui imediatamente reconhecido e anunciado pelo latido inconfundível de alegria do Borg, que levantou, abanou o rabo como nos velhos tempos, entrou no carro como se estivéssemos indo ao parque impressionar as meninas, sentou no meu colo, lambeu minhas mãos e acabou com toda a minha tese sobre o seu sacrifício. Não precisamos falar, apenas trocamos olhares, nós três, e o carro voltou para a garagem.
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Enquanto dilemas estiverem restritos a situações teóricas, a razão será soberana, mas toda a vez que alguém sensibilizar, tocar, mexer, balançar o outro, as emoções vão assumir o comando. Esse é o velho conflito entre razão e emoção, e sabem qual a função das emoções em nossas vidas? Avalizar, qualificar, dar sentido às nossas escolhas, para que possamos dormir com o coração em paz, escutando os latidos do Borg. A emoção falou mais alto.
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Poderia encerrar este artigo no parágrafo anterior, ao estilo comercial de margarina, mas vou colocar uma pimenta a mais. O casal sabe que a relação está doente, o marido quase não fala, a mulher não quer ser tocada, os filhos sofrem com a deterioração da família, todos sabem que é uma causa perdida e racionalmente é preciso terminar o relacionamento, sacrificá-lo para não mais causar sofrimento geral, mas emocionalmente não conseguem. Encontram alívio trancando o outro no porta-malas ou escondendo-se e saindo ou libertando de vez em quando para lamber, rosnar ou morder, reações que erroneamente são interpretadas como perguntas ou cobranças, cujas respostas nem devem ser conhecidas. Quem é mesmo que não pensa a longo prazo?
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Já pensaram quanta emoção e sentimento podem estar encobertos justo no gosto da boca que lambe, da face que é lambida, do beijo que não foi dado ou da lágrima que verte depois da mordida?
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