quinta-feira, 12 de novembro de 2009

CASAMENTO: Da prisão à liberdade

Como mudou o casamento. No inicio era um acordo formal entre os pais dos noivos e tinha como função ligar duas familias, permitindo que elas se perpetuassem. Desde cedo as meninas já estavam reservadas para determinados noivos que as compravam simbolicamente com uma moeda de ouro. Uniam-se posses e poderes, mas deixavam de lado o amor, assim como a vontade e o consentimento dos noivos. Como o casamento era para sempre, os casais permaneciam juntos felizes ou infelizes até que a morte os separasse. Ficavam aprisionados perpetuamente. Às vezes um mandava matar o outro para se libertar e a felicidade voltar a reinar.

Na Idade Média, a igreja institucionalizou o casamento como ato público, trazendo a celebração para o interior do templo e regulando os contratos. Cristo foi inserido na familia, surgindo também o consentimento dado pelos noivos por meio do SIM, a benção nupcial, a indagação aos presentes sobre algum impedimento formal, a exigência da indissolubilidade e a pureza da união. Agora, além de familiar, patrimonial e econômico, o casamento passou a ser um sacramento. Apesar da participação dos noivos na cerimônia, o amor entre os cônjuges era considerado um resultado da união e não a base do relacionamento. A prisão perpétua passou a ser abençoada. O ato sexual era condenado, sendo permitido exclusivamente para fins de procriação. Acreditava-se que “o calor do excesso amoroso poderia gerar crianças com doenças e enfraquecer a descendência”.

Os tempos foram mudando. A partir da revolução industrial, as mulheres começaram a trabalhar e ficar independentes financeiramente, surgiu a pilula anticoncepcional, foi liberado o divórcio e com isto, a influência da familia, religião e estado no casamento diminui, passando teóricamente a ser uma relação de amor com conotação sexual.

Hoje em dia ninguém mais é obrigado a casar. Casa-se por amor. Só por respeito na riqueza e na pobreza ninguém entra mais na igreja. O casamento não produz mais dois prisioneiros. Serve para declarar a todos que foi uma escolha onde decidiram curtir estar na companhia do outro, compartilhar pasta de dentes, atrasos de menstruação, viagens, livros, mau humores, lençois, problemas, contas, resfriados, sorrisos. E se decidirem aumentar a familia, isto será uma consequência do amor e não a meta a ser alcançada.

A regra agora é juntos por amor e prazer e não por compromisso. Não existe mais a obrigação de serem infelizes para sempre. Se as coisas não andarem bem, a separação é muito fácil. Difícil é pagar a pensão, fazer partilha...

Hoje sabemos que as certezas não duram por toda a vida. Mas em uma coisa podemos continuar apostando: no amor.

Esta semana vou a um casamento onde os nubentes estão jogando todas as fichas pela terceira vez. Ambos tem filhos de relacionamentos anteriores, por motivos profissionais fizeram a lua de mel prévia ao casamento, a noiva não vai vestir branco, não vão casar na igreja, vão experimentar juntar os filhos em uma casa nova (quando as datas de todas as guardas coincidirem) e organizaram uma festa para comemorar com os amigos e principamente mostrar a todos que se o casamento não está acontecendo da maneira idealizada pela história, familia, igreja, estado e até por eles próprios, o amor foi mais forte e os uniu apesar de tudo. Sorte deles terem nascido nesta época. E serão abençoados, podem ter certeza.

Parabéns Lucia e Mauro
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

O ANESTESISTA

"Desde que comecei a escrever este blog, só inseri um texto que não é de minha autoria. Agora, chegou a vez do segundo. Rubem Alves conseguiu descrever com muita sensibilidade a magnitude, quase nunca percebida, do trabalho de um anestesiologista. Sendo esta a especialidade médica que exerço diáriamente, suas palavras me emocionaram e achei que poderia dividir esta visão poética."
A anestesia foi a primeira de todas as especialidades médicas. São as Escrituras Sagradas que o afirmam. Pois Deus, para retirar de Adão a costela necessária para a criação de Eva, fez cair sobre o homem um sono profundo. Isso, fazer dormir, é ato de anestesista. Foi só então, depois de exercer as funções de anestesista, que Deus se transformou em cirurgião. Deus não queria que o homem sentisse dor. Uma cirurgia feita sem anestesia é uma experiência de uma brutalidade indescritível. Muitos prefeririam morrer a sofrer os horrores da dor de uma cirurgia sem anestesia.
O livro "O físico" descreve como era a cirurgia antes da descoberta da anestesia. Amputação de uma perna. A pessoa amarrada. A navalha cortando a carne. Os gritos. As contorções do corpo. O sangue jorrando. Depois a serra no seu reque-reque serrando o osso. Seguia-se a costura da carne. E, para terminar, o cautério com azeite fervente ou ferro incandescente.
A dor é o que existe de mais terrível na condição humana. Muito cedo nós a experimentamos. O nenezinho chora e se contorce com suas cólicas. Delas não tenho memória. Mas me lembro das cólicas do meu primeiro filho, que chorou por seis meses, sendo que todos os chás, remédios e benzeções foram inúteis. A única coisa que aliviava era pegá-lo no braço e colocá-lo de barriga para baixo. Todo pai gostaria que os deuses fossem caridosos e transferissem para ele a dor do filho. Doeria menos sentir a dor do filho que vê-lo sentindo dor sem nada poder fazer.
Meu filho Sérgio, o que sofreu cólicas por seis meses, é médico e se especializou em anestesia. É possível que Freud explique. Nossos impulsos vocacionais têm raízes em lugares obscuros da alma. O que não acontece com as escolhas profissionais, que nascem de considerações racionais sobre o mercado de trabalho. É possível que sua vocação de anestesista tenha nascido de suas experiências esquecidas de sofrimento. Aí ele sentiu que seu destino era lutar contra a dor.
A anestesia é uma especialidade modesta. É o cirurgião que executa o grande ato! É ele que é o herói! É o seu nome que é lembrado. É o cirugião que ganha mais. E, no entanto, enquanto o cirurgião está com sua atenção concentrada no lugar preciso do corpo que ele corta e costura, o anestesista está com sua atenção concentrada na vida adormecida. Ele vigia os seus processos vitais. Ele cuida para que a vida não vacile enquanto o corpo é cortado.
Há também as dores da alma que nenhuma cirurgia consegue curar. O medo, por expemplo, não pode ser amputado. Pena. Porque o medo paralisa a vida. Dominada pelo medo, a vida se encolhe, perde a capacidade de lutar, entrega-se à morte. Animais amedrontados se deixam matar sem um único gesto de defesa. E, pelo que sei, as pessoas têm muito medo da anestesia, medo que chega a beirar o pânico, mais medo da anestesia que da violência do ato cirúrgico. É que elas têm medo de dormir. Quem dorme está indefeso, à mercê. Quem está dormindo volta a ser criança. As crianças têm medo de dormir. Por isso elas choram, não querem dormir sozinhas, desejam alguém ao seu lado. Alguém que cuide delas enquanto elas dormem. As canções de ninar são para tirar o medo a fim de que o sono seja tranquilo.
A anestesia pode ser feita de duas formas. A primeira é a anestesia como ato técnico, científico, competente, ato que se executa sobre o corpo da pessoa que vai ser operada. A segunda é igual à primeira, acrescida de um cuidado maternal. O anestesista assume, então, a função do pai e da mãe que cantam canções para espantar o medo. Foi o Sérgio que me contou.
Conversamos muito sobre o que fazemos. E como ele se orgulha do que faz, ele me conta. Contou-me sobre as visitas aos pacientes amedrontados, às vésperas da cirurgia. Na maioria, crianças e adolescentes. O objetivo dessa visista é técnico: checar o estado físico do paciente: pressão, coração, vias respiratórias, etc. Mas a pesssoa que está ali é mais que um corpo. É um ser humano. Está com medo. Medo da dor. Medo da morte, pois nunca se pode ter certeza. É preciso espantar o medo para que a vida não se encolha. mas o medo só sai quando se confia. Não é qualquer pessoa que tira o medo de dormir da criança. Há de ser alguém em quem ela confia. Essa pessoa, e somente ela, tem o poder de cantar uma canção de ninar. O anestesista se transforma então em mãe e pai: pega no colo a criança amedrontada - diante da cirurgia todos nós somos crianças!
Rubem Alves
Leia também "Quebrando o Paradigma", publicado em 27/12/11 - artigo sobre as impressões do autor com seu trabalho como anestesiologista
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