sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Dê ao homem uma máscara e ele lhe dirá a verdade

Já percebeu que as fotos antigas, aquelas da época de seus bisavôs para trás, tinham algo em comum? Ninguém sorria. Nem mesmo reis, rainhas, imperadores, crianças, damas da sociedade. Até mesmo quando a família estava reunida em uma festa, os rostos não mostravam sinal algum de alegria. Será que a sociedade passava por tantos percalços que ninguém tinha vontade de sorrir? Claro que não.

Alguns sustentam que a sobriedade das pessoas era devida à falta de dentes, o que as envergonhava e obrigava a fechar a boca na hora das fotos. Ora, se quase todos eram banguelas, não precisariam se preocupar com a feiura da boca, já que se constituía em normalidade e ninguém iria depreciar esta condição ou se tornar menos atraente pela falta ou podridão de alguns dentes. Além disso, crianças pequenas ainda não sofriam deste mal e mesmo assim não sorriam.

Outra teoria, bem mais aceita, é a de que as câmeras antigas precisavam de um tempo de exposição extremamente longo para capturar uma foto e as pessoas precisavam ficar paradas, respirando lentamente e sem movimentos durante o procedimento. Sorrir, em geral, é algo inato, porém sorrir em frente a uma câmera não é algo instintivo, e forçar um sorriso mantendo-o aberto por um tempo que poderia variar entre cinco e trinta minutos era muito desconfortável, senão impossível. Fazer um rosto de sobriedade era bem mais fácil que manter um sorriso falso.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

FECHADO PRA BALANÇO

 

Fechei para balanço. O que isso quer dizer? Ainda não sei direito, por isso fechei. No ramo comercial significa que a empresa está avaliando as atividades realizadas e fazendo um levantamento de tudo o que é necessário para continuar funcionando. As portas permanecem fechadas, mas lá dentro o trabalho continua. Conferência de estoque, diferenças, furos, sobras.

Normalmente fazem isso nos últimos dias de dezembro, ou então, na primeira semana de janeiro. Durante o ano a correria é tanta que não há como parar e examinar com uma visão de médio e longo prazo como andam as coisas. É tudo pra ontem. Aproveitei a parada obrigatória da quarentena e também fechei as portas, só que meu balanço é pessoal, sentimental.

Talvez este texto esteja um pouco anárquico, mas isto é uma característica inerente ao balanço. Posso garantir que foram várias tentativas de colocar em palavras aquilo que empresas demonstram em números e gráficos. Se expressar sentimentos em palavras já é algo para poucos, fazer um balanço de sentimentos é quase impossível. Em todo caso, enquanto liquido lembranças ruins, expurgo lixos sentimentais, melhor permanecer fechado para evitar mágoas desnecessárias.

Alguns anos atrás peregrinei pelo Caminho de Santiago de Compostela – 350 quilômetros caminhando.  Ao contrário do fechamento de agora, estava aberto para o mundo. Queria conhecer novos lugares, novas pessoas, novas experiências. No inicio tudo era diferente, deslumbrante, novidade. Batia fotos, registrava um diário, enviava relatórios para família. Aos poucos, fui realmente entrando no caminho (ou o caminho foi entrando em mim) e a jornada se tornou cada vez mais interior. Caminhava com o corpo, andava com a alma. Pararam as fotos, começaram os significados. Demorou um pouco para o processo iniciar, era preciso me desligar do trabalho, celular, noticiário, família, pra sobrar tempo e conseguir entrar em mim.

Com a quarentena o inicio foi parecido. Um mundo de novidades na tela do computador. Apesar de a pandemia estar dizimando milhares de pessoas, havia filmes, livros, shows, palestras, para aproveitar enquanto estivesse confinado entre quatro paredes. Desta vez nem precisava caminhar, alojar em albergues, passar fome ou ter bolhas nos pés. Bastava sentar no sofá, pegar um bom lanche, ligar o ar condicionado, assistir uma comédia engraçada e fugir da triste realidade que arrasava o planeta. Dormir até tarde também serviu como uma boa rota de alienação.

Quando um animal é preso numa jaula, não fica bem, não está em seu habitat natural. Embora nós, humanos, tenhamos evoluído e saído da selva, a selva não saiu de nós, o instinto animal permaneceu adormecido. Fomos aprisionados no conforto do lar e por melhor que seja nossa jaula, ainda assim é uma clausura. Com o passar dos dias, o sofá macio de couro foi se transformando em um catre desconfortável com função de divã.  Comecei a conversar comigo e escutar a voz que gritava dentro de mim, mas o barulho da televisão não deixava escutar. Percebi que os aplicativos estavam me cegando, ensurdecendo e alienando. As iguarias e guloseimas deliciosas alimentavam o corpo, mas envenenavam a alma. Desliguei os aparelhos eletrônicos, tranquei a porta, cerrei os olhos, fechei pra balanço.

Algumas pessoas me perguntam o que estou produzindo durante a quarentena. Escrevendo um novo livro, fazendo uma pós-graduação, estudando para um concurso, aprendendo a cozinhar, preparando palestras, shows de mágica? Nada disso. Não estou fazendo nada palpável, visível ou rentável, mas isso não quer dizer que estou totalmente parado.  Parar não significa morrer. Aquilo que nos mata é não saber viver parados, e muitas vezes, parar e a melhor maneira de lá chegar. Aproveito o longo tempo não produtivo no sofá para não fazer, mas para sentir.

Sentir é um verbo que se conjuga para dentro, fazer é conjugado para fora. Estou num retiro interior, escutando meu silêncio e fazendo a contabilidade dos acertos e desencontros emocionais. Sentir, embora às vezes possa machucar, serve como bussola para saber onde estou e para onde quero ir. Sentir já é razão mais que suficiente para parar. Senti de tudo um pouco. Indiferença, desrespeito, descaso, desamor, falsidade, desprezo, medo, abandono, ironia, carência, vergonha alheia, raiva. Não queria ter sentido, mas aconteceu. Quem mandou desligar a televisão e parar pra fazer um balanço? Senti também carinho, consideração, amizade, amor, simpatia, admiração, apego, fraternidade, compaixão, doação, acolhimento, coragem, saudade e principalmente falta. Não falta de ar, falta daqueles que se foram e falta daqueles que disseram que vinham e nem vieram.

Espero conseguir fazer um balanço legal disso tudo. Não tenho grandes expectativas, já que o surgimento ou desaparecimento destes sentimentos não depende só de mim. Estou fazendo a minha parte, que por enquanto é fechar pra balanço. Não está fácil lidar com tudo isso. Sinto-me confuso, inseguro, não tenho ideia do que fazer para que saiamos dessa pandemia com um planeta mais sensível e justo. Se a solução dos problemas fosse caminhar 1000 quilômetros, já estaria na estrada.  Quando vai terminar o balanço? Não sei, mas abrir as minhas portas não vai ter nada a ver com o desenvolvimento de uma vacina efetiva, descoberta da cura ou eliminação do vírus. O furo é mais embaixo.

Tenho uma orquídea em minha casa que passa o ano inteiro fechada. Uma vez por ano, geralmente na primavera, abre uma linda flor, que ficou doze meses se preparando pra embelezar a sala. Talvez este ano não abra. Será assim também comigo, quando for a hora, o balanço termina e as portas abrem. Já se passaram seis longos e sentidos meses.