segunda-feira, 29 de março de 2010

"Ser livre é ter um amor pra se prender" *

Todos passamos por mudanças. Cada fase de nossas vidas é como uma espécie de adaptação na forma de encararmos o mundo, de resolvermos nossos impasses, de tentarmos um crescimento pessoal. E essas mudanças são percebidas em todas as pessoas. O famoso artista espanhol Pablo Picasso, por exemplo, não fugiu à regra e pincelou cada metamorfose com cores e estilos diferentes. Sua juventude lírica deu origem à fase rosa da pintura, a guerra espanhola foi retratada sob a forma expressionista, e assim ele foi pintando suas telas de azul, preto, marrom, conforme as cores de sua vida. Também eu me modifico, e por meio das palavras tento entender-me e expressar minhas idéias.


Neste momento sinto necessidade de escrever na primeira pessoa. É a fase do “eu”. Preciso esclarecer que nem tudo necessariamente aconteceu da maneira literal como está escrito. A veracidade ou não dos fatos é um privilégio, ou sacrilégio de poucos com quem divido minha intimidade, mas a mensagem e os sentimentos descritos são absolutamente fiéis.

Gosto muito de praticar a corrida. Correr é um exercício completamente diferente de caminhar, e a diferença não é somente na queima de calorias, mas principalmente no tipo de emoção despertada. Quando se caminha, um pé fica firme no chão enquanto o outro está no ar, fazendo o movimento para o próximo passo. Um dos pés sempre está na terra. Na corrida, os dois pés, em determinado momento, ficam no ar. E esta sensação assemelha-se a um vôo, a ser livre. Quem já experimentou correr e sentiu esta liberdade, não quer mais voltar a caminhar.


Imaginemos agora um casamento. Papéis estabelecidos e juntamente com eles, a divisão de espaços e desejos com um parceiro. Aos poucos vai surgindo uma sensação de sufocamento e um dos cônjuges começa a sonhar com um mundo livre, sente vontade de sair e pegar o ônibus para a “Estação Liberdade”. Comportamento mais do que natural, pois as melhores idéias sobre liberdade foram escritas no cárcere.

Depois de mais de uma década de casamento tradicional, o divórcio atinge em cheio o casal. Junto com ele, a fase inicial de novas amizades, festas, relações sem maiores compromissos e o já conhecido discurso de que não voltarão mais a morar com outra pessoa. Aconteceu comigo e com mais de metade da torcida do flamengo. Acostumados a caminhar no casamento, com a separação experimentamos correr e sentimos o gostinho da liberdade. Um sabor maravilhoso, tentador e que vicia a ponto de tornar o usuário escravo da mesma.


Quero poder tomar um choppinho com os amigos quando tiver vontade e sem hora pra voltar, assistir o programa da Hebe sem culpa, cortar as unhas do pé em privacidade, namorar só quando um estiver a fim de ver o outro e não precisar mais dar satisfação pra ninguém. Aquele velho blá-blá-blá de sempre. Caminhar nunca mais, casar nem pensar, compartilhar virou palavrão...Será que isto é liberdade?

Um dia você conhece uma pessoa interessante, atraente, que lhe desperta aquela admiração que precede a paixão. Você a convida para um fim de semana na serra, tomam banho juntinhos, dançam coladinhos, conversam fazendo cafuné, assistem um filme no sofá, fazem juntos um brigadeiro de panela e dividem lambendo os dedos um do outro. Voltam já apaixonados. No outro final de semana ele(a) quer repetir a dose. Você também, mas ao mesmo tempo não quer perder o jogo de futebol, a festa da turma da academia, o almoço com a família. A tentação da liberdade começa a perturbar a relação e sem que você perceba, joga um balde de água fria na paixão e acena com outras opções mais interessantes que não vão atrapalhar seus planos. Você escolhe os amigos e as possibilidades futuras. Isto é liberdade?


Ser livre nem sempre é só seguir a sua própria vontade; às vezes consiste justamente em fugir dela. A prisão não são as grades ou o compromisso com alguém, e a liberdade não são os amigos, a rua e as festas. É uma questão de escolhas. Ser livre é sentir a tranqüilidade de estar acompanhado de alguém com quem se pode ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se sinta incomodado, é poder cair pregado de sono logo após o jantar sem precisar ficar seduzindo, é contar uma fraqueza, pedir um conselho, derramar lágrimas de alegria e também de tristeza... “Ser livre nesta vida é ter um amor pra se prender” – Carpinejar – e eu acrescentaria, “escolhendo e construindo juntos o tamanho e modelo da prisão em que vamos nos prender.”


E voltando à analogia inicial, se a corrida nos dá a sensação maravilhosa de liberdade, de voar com o vento batendo na face, a caminhada também tem seus atrativos. Numa caminhada podemos conversar comodamente com outra pessoa, podemos dividir as impressões que a paisagem nos causa, podemos compartilhar sutilmente um toque de mãos (experimente correr de mãos dadas...), podemos dividir as tristezas e as alegrias e o mais importante, com alguém que caminha no mesmo passo...


No treino da vida, há de se ter a sensibilidade para perceber o momento certo de iniciar uma tresloucada corrida, como também a hora de acalmar os passos e caminhar de mãos dadas. Todo bom atleta sabe disto, e o bom amante também.
* frase título de autoria de Fabricio Carpinejar - poeta gaúcho



terça-feira, 16 de março de 2010

A caneta do médico

Na pré história, nossos ancestrais acreditavam que o pecado era a causa de todas as doenças, e sacerdotes faziam o papel de médicos utilizando magia, oração e jejum para acalmar os deuses e expulsar os maus espíritos. Passando pela civilização egípcia, depois grega o conhecimento foi se aprimorando, virou ciência, e o tratamento das doenças gradativamente ficou sendo exclusividade dos médicos.

Desde o diagnóstico até o tratamento, tudo passava pelas mãos do médico, que apalpava o paciente, preparava poções medicamentosas e eventualmente amputava alguma parte do corpo doente. Eram muitos pacientes, bastante trabalho e a demanda não era adequadamente suprida.

O que fizeram os médicos? Pediram ajuda na preparação dos medicamentos. Treinaram e capacitaram pessoas na manufatura de remédios, dando origem a primeira produção em massa derivada do atendimento médico: a indústria farmacêutica.

Os primeiros médicos atendiam em suas residências ou no domicilio dos pacientes. Alguns precisavam de cuidados mais intensivos, mas não havia condições de atendimento exclusivo. Surgiu então a necessidade de uma centralização do serviço para otimização dos recursos. Pacientes graves seriam agrupados em um local especializado para poupar o deslocamento do médico e promover uma atenção mais eficaz. Cria-se assim a segunda indústria derivada do trabalho médico, o Hospital.

O conhecimento médico foi avançando e aparelhos eletrônicos sofisticados passaram a fazer diagnósticos e salvar vidas até então condenadas. Desenvolve-se então a terceira indústria derivada do saber médico, a indústria diagnóstica. Exames laboratoriais, fisiológicos, patológicos, radiológicos, ecografias, tomografias, ressonâncias passaram a complementar o exame clinico e em alguns casos até mesmo a substituí-lo.

Mais recentemente, outra indústria passou a trabalhar em função dos serviços médicos: planos e seguradoras de saúde oferecem proteção e cobertura de despesas médico-hospitalares, mediante aportes mensais de valores pré-fixados.

Hoje, o médico já não tem em suas mãos o controle total da saúde. Depende das indústrias que precisam faturar, pagar funcionários e dividir o lucro com os acionistas. Desta forma, quem estabelece os custos de medicamentos, exames, internações hospitalares, aportes mensais, órteses e próteses não é mais o médico. As despesas fugiram de seu controle. Problemas logísticos e financeiros nem sempre permitem que o tratamento proposto possa ser efetivado integralmente.

Por outro lado, nenhuma das indústrias da saúde funciona sem o médico. É preciso que ele tire a caneta do bolso e solicite uma internação, exame ou medicamento para que as máquinas sejam acionadas e iniciem sua produção. A saúde financeira das indústrias também depende do médico.

Esta interdependência médico-indústria nem sempre agrada a todos e precisa ser revista. Médicos sentem-se desvalorizados, empresas reclamam da sobrecarga ou carência de exames, baixo ou alto volume de prescrição medicamentosa, alta carga de impostos, internações prolongadas, mas ninguém pode parar. Ninguém tem tempo de analisar esta integração. Todos precisam faturar. Todos precisam ser atendidos. Quem acaba pagando a conta? O pobre do paciente, como sempre.
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