segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Quando as portas se abrirem

 Em plena pandemia, você retido contra vontade em casa há mais de cem dias, resolve passar o tempo  arrumando os armários de seu quarto. Bem lá no fundo da última gaveta, encontra uma velha lâmpada metálica, guardada desde os tempos da infância, que nem lembrava mais que existia. Como na história de Aladim, esfrega um pano para limpar a poeira e surpresa: surge o gênio da lâmpada.

Desta vez não lhe pede para fazer três pedidos, oferece de imediato aquilo que talvez você e toda a torcida do Flamengo estejam suplicando há meses: a cura da pandemia e o retorno da liberdade de ir e vir. Só que este é um gênio do século 21, não tão bondoso, e vai lhe cobrar algo em troca. Mas fique tranquilo, você pode escolher o que vai ceder na permuta, ele lhe ofereceu várias opções.

- Você sai da quarentena imediatamente, mas estará envelhecido 10 anos.

- Você sai da quarentena agora mesmo, porém 20 quilos mais gordo.

- Você paga um milhão de dólares e está livre da quarentena.

- Você não terá mais seus amigos, sua família, seu trabalho, sequer seu idioma. Será um imigrante alienígena no momento que sair da quarentena.

- Se você é um crente religioso, deixará de ser. Se não acredita em Deus, passará a ser um religioso fanático.

- Você perderá a capacidade de sonhar, apaixonar e amar no momento que sair da quarentena.

Pronto, pode escolher uma alternativa. Só uma e instantaneamente estará livre. Existe também a opção de não dar ouvidos ao gênio e permanecer na quarentena aguardando a descoberta da vacina.  Precisa de um tempo pra pensar? Não demore muito, agora que o gênio está livre, não ficará lhe esperando eternamente, ele quer aproveitar a liberdade repentina.

Será que o gênio é tão genial assim? Se fosse tão poderoso, não estaria preso dentro de uma lâmpada. O preço que o gênio paga por seus poderes mágicos é a perda da liberdade. Ele sabe bem o que é viver séculos trancafiado dentro de uma lâmpada esperando que alguma alma ingênua e distraída a esfregue para libertá-lo. E por saber o extraordinário valor da liberdade, ele geralmente agradece seu salvador concedendo-lhe três pedidos como pagamento.

A semelhança do gênio, estamos trancados dentro de nossas casas esperando que alguma mente pesquisadora brilhante descubra a tal vacina e nos liberte da quarentena. Estamos preparados para sair? O que vamos oferecer como pagamento ao nosso salvador? Talvez este tempo de cativeiro seja útil para revermos a preciosa liberdade que possuíamos.

Liberdade não significa ir e vir sem responsabilidade. Liberdade é um estado interior, inclui se prender, se agarrar, possuir uma dependência livre e voluntária em alguém ou algo. Carpinejar escreve que liberdade é ter alguém em quem se prender.  No momento em que sentimos segurança na família, amigos, religião, trabalho, amores, valores, seja lá o que for, podemos alçar voos bem mais altos. Se você vestir um paraquedas, pode se jogar de um avião nas alturas com toda segurança. Se amar e for amado, pode desmedidamente se entregar; se tomar vacina pode sair sem medo pra rua.

Liberdade não é um luxo dos bem aventurados nos tempos de bonança, os melhores textos sobre liberdade foram escritos no isolamento do cárcere. Escravos, presidiários, o gênio da lâmpada e agora nós mesmos, estamos provando o amargo sabor da liberdade perdida. O que poderíamos oferecer ao planeta como recompensa quando formos soltos vivos e com toda segurança?  Pense nisso enquanto as portas não abrem.

 

 

 

 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Espelho, espelho meu



Alguns anos atrás, discutíamos entre amigos, em tom de brincadeira, quem era mais importante para a sociedade, o médico ou o desembargador. Argumentei que o desembargador teria poderes para dar ordens de prender ou soltar alguém da prisão, no entanto, não possuía a autoridade médica para solicitar que uma pessoa se despisse para ser examinada. Ordenar era muito diferente de solicitar.

E daí? Comentou o magistrado, não é isto que torna um profissional mais importante que o outro, eu sou chamado de excelência e você não. Além disso, continuou ele, ambos somos funcionários públicos, concursados na mesma época, não obstante, meu salário é três vezes maior que o seu. Deve haver alguma razão para isto. Imediatamente repliquei: razão não! arbitrariedade, injustiça, iniquidade, isto sim é o motivo de tamanha desigualdade. E digo mais, injuriava-o animado, as chances de você precisar de meus serviços são infinitamente maiores que as minhas de precisar dos seus, um dia você vai aprender a valorizar os médicos.

Segui com minha tese dizendo a ele que quando estivesse dentro de um avião em pleno vôo e a aeromoça solicitasse a presença de um médico a bordo, que ele levantasse a mão dizendo ser desembargador e se oferecesse para ajudá-la. Ou então, quando estivesse no saguão do tribunal, ou durante uma audiência e alguém apresentasse uma parada cardíaca ou uma crise convulsiva, que o mesmo tirasse sua toga impecável e realizasse uma respiração boca a boca ou uma desfibrilação cardíaca.