quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Quem são os verdadeiros artistas?


Cada vez que o circo chegava à cidade era uma festa. Esperava a semana inteira pelo domingo para ver os palhaços, trapezistas, mágicos. Lembro até hoje da lona suja e rasgada, das cadeiras e arquibancadas de madeira, da serragem misturada com o barro do chão, do cheiro do leão, do urso, dos macacos...Vibrava e achava sensacional quando anunciavam o domador espanhol Antonio Sanchez, o equilibrista chinês William Wu e a dançarina francesa Margot Delamour, verdadeiros artistas que colocavam a cabeça dentro da boca do leão, andavam em cordas nas alturas, tudo meio improvisado, sem grande segurança, mas com um fascínio impressionante.

Hoje o circo mudou. A referência é o Cirque Du Soleil, onde espetáculos são realizados em teatros com poltronas luxuosas, artistas internacionais mascarados e sem identificação, ausência de animais, ingressos pouco acessíveis à população de baixa renda e tendo a tecnologia como base de todo o show. A concepção lúdica do circo é feita em escritórios e estúdios que projetam cenários e efeitos especiais em laboratório para depois buscarem artistas que se encaixem no roteiro. Assim são contratados campeões de nado sincronizado, atletas olímpicos e dançarinos de rua que jamais pensaram em se tornar artistas, para viabilizar a concepção dos produtores.

Na medida em que se consegue criar a imagem de um leão feroz quase real, o domador não precisa mais ser um destemido artista. Um bailarino é capaz de fazer uma performance mais teatral e substituir o velho chicote por um bastão de laser. Luzes, música, fumaça, dão suporte às possíveis deficiências do dançarino, que através de efeitos especiais alcança a glória, mas paga o preço de ficar incógnito.
.
Hospitais também mudaram. Médicos eram os artistas e o hospital apenas a lona que abrigava e acolhia o espetáculo, que improvisado, sem grandes recursos, mas com muita filantropia, era acessível à população. Assim como no circo, a tecnologia entrou na saúde e promoveu um avanço inquestionável, suprindo deficiências de olhos, mãos e ouvidos humanos, conseguindo magicamente “enxergar” e “atuar” no interior de pacientes de maneira não invasiva.

Hospitais passaram a comprar equipamentos diagnósticos e terapêuticos de última geração, melhoraram a resolução dos problemas, aumentaram os custos e à semelhança do Cirque du Soleil, passaram a contratar médicos que se adequassem às suas demandas, em alguns casos, pouco importando a identidade do profissional.

Tecnologia, mídia e poder econômico ao criarem curas e sonhos, tornaram estruturas mais importantes que palcos. Artistas e médicos foram gradativamente sendo substituídos, passando a ser reféns de gestores e diretores. Em que pese tudo isto, a vida continua sendo o grande espetáculo ao qual todos são convidados a participar, alguns criando ilusões, outros sendo levados pelas aparências, outros mais vestindo máscaras e se despersonalizando...Não sei qual será o próximo ato, mas no dia em que o leão de verdade fugir da jaula, não poderemos nos iludir, precisaremos mesmo é de domadores e médicos.
Para melhor entendimento, assista o video abaixo logo após a leitura.
http://www.youtube.com/watch?v=kD5bQ0v7N9E
Leia mais no site: http://www.ildomeyer.com.br/
.



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Por que os apaixonados não conseguem enxergar

Desde criança sempre ouvi falar que paixão era um sentimento que transformava tudo o que o outro fazia, dizia, vestia, pensava em algo lindo e maravilhoso, transformando a outra pessoa na mais fantástica das criaturas deste mundo. A tatuagem nas costas vira algo especial, as sardas no rosto são um charme, os dentes mostram um sorriso encantador, sua voz rouca transmite tranquilidade, seu bom humor impregna o ambiente... até o modo como solta a fumaça do cigarro passa a ser bonito e não incomoda mais.



Demorei muito para aprender que o sentimento que faz todos esses milagres não é a paixão. A paixão é um sentimento que quando chega traz consigo uma venda que cega a todos os sentidos, deixando os enamorados à mercê da imaginação, do delírio, do desejo, de uma idealização que vê no outro a perfeição. E nesse clima de fantasia é comum sapos se transformarem em príncipes e princesas. É muito bom experimentar esse turbilhão de sensações, mas um belo dia o sonho acaba, as pessoas acordam e a paixão termina, e agora sim, invertem-se os papéis e príncipes e princesas viram sapos. Nada contra estar apaixonado, mas este sentimento tem prazo de validade e inevitavelmente vai se esgotar.


Já o amor pode ser visto como o verdadeiro instrumento da transformação, pois não é cego nem sonhador. O amor vai retirando pouco a pouco a venda da paixão idealizada, e a cada clarão que se faça, o outro vai sendo visto naquilo que realmente é e no quanto realmente atenda ao par nos critérios de uma parceria. Desvelado, o outro passa a ser único, especial, com a devida condescendência aos seus defeitos, pois que o amor, se sabe, é condescendente. E por ser único, especial, admirado, o ser amado adquire o caráter de precioso. E coisas preciosas devem ser guardadas para sempre, sem risco de deteriorização. O amor é uma delas. Há controvérsias, mas quem amou sabe, amar é para toda a vida.


Paixão pode se transformar em amor, mas entre um e outro, há milhares de situações a serem experimentadas, muitas delas mal compreendidas e mal resolvidas. Nem sempre se tem uma noção clara do que está acontecendo lá dentro de nosso coração, e às vezes enquanto um dos parceiros ainda está com os olhos vendados, confundindo seus sentimentos e emoções, o outro já tem certezas, levando ao descompasso do tempo certo para, juntos, viverem o amor. Por conta de um, preso no estágio da paixão, os dois são privados do avanço. E assim a maior parte das intenções não sobrevive à fase da idealização, e perdem-se no temerário vácuo que separa a paixão do amor.
.
Sequelados e desiludidos depois de muitos naufrágios sem sequer beliscarem o amor, alguns desenganados optam por tentar um caminho menos sofrido e mais seguro: amar sem passar pela fase da paixão. Relacionam-se, mas não se entregam, ficando sempre com um ou dois pés atrás. Não dão chance para os poros se eriçarem, a respiração trancar, o coração disparar, o pensamento colorir, a boca salivar.


Será possível chegar ao amor sem antes se apaixonar? Não sei responder, embora imagine que tudo nesta vida seja possível, e que não exista uma receita de bolo universal que ensine como alcançar o amor perfeito. Apesar de todos os riscos, continuo acreditando que se apaixonar faz parte da vida e que o apaixonamento seja um pré-requisito para o amor.


Antes que a venda seja retirada, as qualidades que seduziram, apaixonaram e transformaram o ser amado em único precisam deixar marcas profundas, tais como as flechas do cupido, que uma vez presas no coração, ali permanecem para sempre, atenuando defeitos e falhas que o amado certamente apresentará.


Como seria fácil se pudéssemos ter desde o início certeza de nossos sentimentos, ou se pelo menos pudéssemos ter controle sobre estes, ou, mais ainda, ter a exata noção de como somos vistos e o que os outros sentem.
.
Atravessar a ponte que une a paixão ao amor é para poucos. Não existem atalhos, o caminho não está claramente demarcado e não tem graça chegar lá desacompanhado. Atingir o amor implica entrar na ponte de olhos vendados, segurando a mão do amado e apostar que aquele que conseguir enxergar primeiro, retardará seu ritmo até que o outro consiga, ainda no estágio da paixão, alcançá-lo.
Leia mais no site: http://www.ildomeyer.com.br/
.