O que fazer para aguentar o
isolamento social desta pandemia? Para mim, escrever é uma maneira de conviver em
paz com a solidão e o isolamento. Posso estar trancado dentro de um quarto por
horas a fio, posso não ver ninguém por vários dias, mas se estiver escrevendo
não estou só, sequer no quarto estou. Mais que isso, quando escrevo, escapo
temporariamente deste mundo de competição, pandemia, corrupção, preconceito,
desigualdade e outras coisas que me fazem mal e entro no meu mundo encantado,
onde crio cenários, personagens e histórias que me dão energia pra aguentar e
enfrentar a dureza da vida.
Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche,
“A Arte torna a vida suportável”, ou seja, através destas escapadelas
esporádicas da realidade o ser humano consegue a estabilidade necessária para
suportar as adversidades cotidianas. A meu modo, procuro ficar o máximo de
tempo no mundo cativante da poesia, musica, dança, cinema, teatro, pintura,
mágica. Poderia escolher outro caminho e me apartar da realidade com drogas,
álcool, depressão, mas não é a minha praia. Meu bálsamo para a vida é a arte.
Antigamente, arte boa era aquela
que imitava fielmente a realidade. Paisagens, fotos, figuras religiosas. Com o
modernismo começam a aparecer figuras sem formas definidas e cenas sem lógica,
rejeitando completamente o academicismo. Vanguardistas de plantão aproveitaram
esta onda de revolução estética para transmitir ideias políticas e éticas de
maneira subliminar. Como muitos não se
deram conta disso, artistas precisaram ser ainda mais ousados e diretos. Para
os menos atentos, a arte passou a ser uma espécie de loucura tolerável, onde
malucos poderiam se expressar sem maiores consequências.
Só que não. A arte nunca é uma
experiência banal para quem a realiza. A loucura da arte sempre foi muito
petulante e perigosa, veladamente ela traz consigo a capacidade de provocar uma
rachadura na visão arcaica das pessoas, alterando a sensibilidade e a percepção
das coisas, revelando outros jeitos de encarar a vida e o mundo. A arte é a
mentira que nos permite conhecer a verdade – Pablo Picasso.
Meu pai era aficionado por circo
e cinema. Jamais perdia uma estreia de filme ou um domingo com a família,
comendo pipoca e algodão doce no camarote do circo. Acabou fazendo amizade com a
comunidade circense. Quando vinham fazer temporadas de shows em Porto Alegre, já
sabiam que haveria um amigo de confiança que lhes acolheria, um médico que os
atenderia e uma família de espectadores para quase todas as sessões. Certa
ocasião houve um incêndio enorme no circo, tudo perdido. Animais foram para o
zoológico e artistas ficaram acampados em nossa casa.
Palhaços, mágicos, trapezistas,
bailarinas, equilibristas, contorcionistas, posso dizer que quase nasci num
picadeiro de circo. Na época, os irmãos Robattini estavam com seu espetáculo na
cidade e fizeram uma proposta a meus pais. Como não possuíam filhos, disseram
que gostariam de me adotar, pois quando crescesse, seria o astro principal do
circo, um grande e famoso domador de leões.
Delicadamente meus pais
recusaram, respondendo que minha vocação não seria domar e sim libertar. Iriam
me preparar para a liberdade de voar e não para as grades de gaiolas ou jaulas.
A amizade das famílias não se abalou nem um centímetro e o gosto pelo circo só
cresceu. Com dez anos de idade comuniquei a meus pais que não queria mais ir à
escola, desejava ser mágico do circo e viajar pelo mundo fazendo carros
aparecerem, elefantes desaparecerem, serrando mulheres ao meio, levitando no
palco. O que mais um menino de dez anos pode desejar da vida?
Não foi fácil para nenhum dos
lados. Se meus pais pregavam a liberdade, como recusar o sonho de um filho de
abrir a mente das pessoas, criando fantasias e praticando a arte da
impossibilidade? Por outro lado, não queriam se separar de mim e também
sonhavam em ter um filho com diploma universitário. Depois de muitas lágrimas
derramadas, finalmente chegamos a um acordo. Durante as férias escolares
passaria uma temporada no circo, aprendendo mágicas, convivendo com artistas e
animais ferozes, morando em barracas, montando e desmontando lona, picadeiro,
arquibancadas. Foi um período muito feliz, inesquecível. Contava os dias para
entrar em férias, tirar o uniforme escolar e ir para o mundo encantado do circo.
Aos dezoito anos tive que tomar
uma decisão determinante. Trabalhar no circo ou fazer vestibular. Pode até
parecer que foi uma escolha simples de fazer, mas não foi bem assim. Havia
muita pressão para não ser um artista de circo itinerante. Confesso que ser médico era um trabalho que também
me encantava, pois curar doenças, aliviar dores, sofrimentos, renovar esperanças
de vida, de certa forma, eram mágicas transcendentes e libertadoras, tão ou
mais grandiosas que os truques de ilusionismo. Só que o circo era mágica em
natura. No circo respirava fantasia, na medicina o cheiro era de remédio.
Acabei optando pela faculdade de
medicina. Escolhi ser anestesiologista, profissional que tem a destreza pra
fazer uma pessoa dormir e acordar sem dor. E se possível, tendo um sonho bem
legal. Encarava isto como uma espécie de hipnotismo químico. Para muitos,
medicina é uma ciência, para mim, medicina também é uma arte. A ciência
descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas. Não fui um domador de
leões, mas aprendi a amansar a dor. Não fiz uma mulher levitar no palco, mas
tiro muita gente do leito hospitalar. Não fui palhaço, mas acabei com muitas
lágrimas.
E o circo? Tenho saudade, sempre
que tem circo na cidade, volto lá pra ser criança e dar boas risadas. Quando a
vida mostra seu lado triste, me prende dentro de casa, me afasta dos amigos, lembro
que até o palhaço mais alegre, pode chorar em um dia de folga. Nestas horas,
preciso de um circo pra me encontrar. Com lápis e papel chamo o circo pra bem
perto. E se der, coloco o domador, o mágico
e o palhaço dentro de mim.