domingo, 28 de fevereiro de 2010

PRODUÇÃO INDEPENDENTE

Quando pensei que nada mais me surpreenderia, minha teoria desabou. Uma amiga muito querida me convidou para um jantar a dois. Conversa tranquila, leve, descontraída. Depois da sobremesa, enquanto saboreávamos um delicioso café, veio a surpresa: ela queria fazer uma “produção independente” e eu tinha sido escolhido para realizar a tarefa e ser seu parceiro. Confesso que nunca, nem em minhas fantasias mais secretas, imaginei ser protagonista deste tipo de projeto, por outro lado, confesso também que fiquei bastante envaidecido com a proposta.

Este tipo de decisão não é fácil. Fiquei paralisado emocionalmente. Não consegui falar, perguntar, raciocinar. Pedi alguns dias para pensar. E não consegui fazer outra coisa. Por qual motivo teria sido eu o escolhido? Beleza, inteligência, saúde, charme, simpatia, humildade, amizade... Deveria eu perguntar quais eram as razões? Faríamos de maneira intensiva ou seria um projeto a ser concluído sem pressa? Conseguiria eu ser um mero figurante, sem envolvimento algum? A amizade se manteria igual?

A confusão foi aumentando, então tentei sair do plano pessoal e pensar apenas do ponto de vista profissional. Quando uma empresa contrata um consultor para uma tarefa temporária importante, esta pessoa consegue ser absolutamente técnica em seu trabalho? Não vibra com os resultados positivos? Depois de concluído o trabalho, faz um acompanhamento, mesmo que não remunerado, como curiosidade a até mesmo como uma espécie de pós vendas de seu serviço? Um jogador de futebol ao ser transferido de clube consegue simplesmente esquecer ou renegar seu passado?

Tentei então pensar em como as empresas escolhem os consultores. Realizam uma pesquisa de mercado e selecionam aqueles que reúnem as melhores condições ou contratam de acordo com o orçamento disponível? Poderia eu sugerir o nome de alguém que pudesse se adaptar melhor às necessidades de minha amiga? No âmbito profissional as respostas não me deixaram satisfeito, as idéias se embaralharam e optei por voltar a pensar no lado sentimental da vida.

Quantas vezes hesitei e não consegui jogar fora aquelas calças velhas, os tênis usados, as conchas recolhidas na praia, as rolhas de vinhos bebidos? De alguma forma me marcaram e não quis me desfazer das lembranças. Cuido do meu carro, de minha casa, da planta no jardim. Se tivesse um gato ou cachorro cuidaria também. Como iria conseguir fazer uma produção independente sem me envolver? Como não acompanhar seu desenvolvimento? Como não ficar imaginando como será o rostinho do bebê? Como doar um órgão para alguém e não se sentir gratificado, não se tornar meio irmão do receptor?

Se a doação fosse anônima, talvez conseguisse fazer algo absolutamente técnico, mas não se tratava de algo impessoal. A receptora tem nome, endereço, CPF, é minha amiga, fez o convite olhando direto no meu olho e me liberou de qualquer compromisso. Sei que muitos pais colocam filhos no mundo e depois somem. Mães também desaparecem. Alguns física, outros emocionalmente. Isto não me serve de consolo, nem como desculpa. Pelo contrário, aumenta ainda mais a responsabilidade de minha decisão.

Depois de muitas horas de indecisão, ficou clara para mim a impossibilidade de aceitar o convite e não me envolver com o projeto. Se aceitasse, iria me jogar de cabeça e ser pai de verdade. Acontece que aprendi na escola e nunca mais esqueci que a coisa mais importante que um pai pode fazer pelo seu filho é amar a mãe dele. O que não era o meu caso, nem o de minha amiga. É a intenção, e não a doação, que faz o doador. Se fosse para doar, gostaria de dar amor e não sêmen.

Amigos são para todas as horas. Na alegria, na tristeza, na riqueza, na pobreza, na saúde, na doença, no restaurante, no desejo, no sonho, na cama, no abraço, na conversa... A produção independente ainda vai acontecer? Não sei. Serei o doador? Provavelmente não. Continuamos amigos? Mais do que nunca. O filho ainda não fizemos, mas as conversas sobre o tema estão sendo ótimas.
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A mentira mais cruel

Já imaginaram como seriam as relações se os pensamentos fossem abertos e pudessem ser lidos pelos outros? Provavelmente a convivência se tornaria impraticável. Atração, desejo, amor, fantasia ou suas ausências seriam captadas por telepatia instantaneamente. Raiva, desprezo, falta de admiração e ímpetos de terminar um relacionamento não teriam a possibilidade de dissimulação. Quem sabe assim teríamos um mundo mais honesto, mas estamos preparados para isto?

A resposta é um categórico NÃO. Desde que o homem começou a falar, inventou a mentira romântica. Aquela que é dita dentro de um relacionamento amoroso para agradar ou não magoar o outro. Funciona como uma forma de ilusão, ajudando a formar casais, construir famílias e viver em sociedade. Talvez o nome “mentira romântica” não seja o mais adequado, pois mentira não tem nada de romantismo, mas enfim...

A maioria das pessoas não tem sequer a coragem de discutir os problemas do cotidiano, os sentimentos, as mudanças no desejo e em seu objeto, e não quer encarar de frente a situação. Isto leva parceiros a mentir para que o assunto “nós dois” seja adiado indefinidamente. Uma mentirinha aqui, outra ali, uma omissão acolá e todos saem mais ou menos felizes. Ninguém ferido mortalmente. Uma solução fácil, rápida e sem muito sofrimento. Será mesmo?

A mentira romântica se tornou um mal necessário e até mesmo uma rotina em nossas vidas. Funciona como uma espécie de calmante, formando uma nuvem de fumaça colorida, com efeito sedativo imediato e quase sempre de confusão a longo prazo. Assim como o álcool, este tipo de mentira também é tolerado em doses pequenas, pois existe um reconhecimento não formal de que nem sempre nossos sentimentos são compatíveis com o modo tradicional de relacionamento e com as regras que nós mesmos criamos. Assim, a falsa moral releva e até perdoa estas “pequenas mentiras”, que passaram a ser usadas quase que sem pensar em suas conseqüências.

Atire a primeira pedra quem nunca falseou com a verdade para não desagradar ao outro. Talvez algumas raras e virtuosas pessoas jamais escondam seus sentimentos, mas para a maioria dos seres humanos, mentir é simplesmente inevitável.

Acontece que não existem mentiras pequenas ou meias mentiras. Neste território insalubre só existem duas possibilidades: verdade ou mentira. E a mentira tem um preço. Não gostaria de entrar no mérito da quebra de confiança ou nas conseqüências das ditas mentiras criminosas, intencionais, premeditadas, do tipo não roubei, não trai, não fui eu...o foco aqui são as mentiras sentimentais, românticas, utilizadas como amortecedores contra a dura verdade. O preço a pagar é a omissão de uma parte dos sentimentos em troca de falsas declarações. Pensar algo e dizer o contrário.

Muitas vezes quando um parceiro pergunta ao outro se esta gordo(a) ou bonito(a), na verdade gostaria de saber se ainda é amado(a), apesar da imagem corporal que esteja apresentando. Se o companheiro tenta agradar e desonestamente responde que está bonito(a), quando o percebe gordo(a) e desengonçado(a), pode estar criando um problema para ambos. Não seria mais correto afirmar: eu te amo, mesmo com esses quilinhos a mais...?

Ao dizer aquilo que não se pensa estamos praticando uma agressão, mas não contra quem recebe, e sim contra quem a pratica. Será que não dói dizer eu te amo, quando o que existe mesmo é dependência econômica, insegurança e medo da solidão? Ou não dizer, quando o amor é mais do que evidente? A traição é contra os próprios sentimentos, contra a honestidade e contra o eu interior, que se tiver um pouco de integridade e consciência vai ter que escutar a voz contrariada dos sentimentos reclamando das palavras ou atos praticados. O grande problema talvez nem seja a mentira propriamente dita, mas os motivos que nos levam a mentir, pois as mentiras mais cruéis são aquelas que dizemos para nós mesmos, em silêncio.
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