Fechei para balanço. O que isso quer dizer? Ainda
não sei direito, por isso fechei. No ramo comercial significa que a empresa
está avaliando as atividades realizadas e fazendo um levantamento de tudo o que
é necessário para continuar funcionando. As portas permanecem fechadas, mas lá
dentro o trabalho continua. Conferência de estoque, diferenças, furos, sobras.
Normalmente fazem isso nos últimos dias de dezembro,
ou então, na primeira semana de janeiro. Durante o ano a correria é tanta que
não há como parar e examinar com uma visão de médio e longo prazo como andam as
coisas. É tudo pra ontem. Aproveitei a parada obrigatória da quarentena e
também fechei as portas, só que meu balanço é pessoal, sentimental.
Talvez este texto esteja um pouco anárquico, mas
isto é uma característica inerente ao balanço. Posso garantir que foram várias
tentativas de colocar em palavras aquilo que empresas demonstram em números e
gráficos. Se expressar sentimentos em palavras já é algo para poucos, fazer um
balanço de sentimentos é quase impossível. Em todo caso, enquanto liquido
lembranças ruins, expurgo lixos sentimentais, melhor permanecer fechado para
evitar mágoas desnecessárias.
Alguns anos atrás peregrinei pelo Caminho de
Santiago de Compostela – 350 quilômetros caminhando. Ao contrário do fechamento de agora, estava
aberto para o mundo. Queria conhecer novos lugares, novas pessoas, novas
experiências. No inicio tudo era diferente, deslumbrante, novidade. Batia
fotos, registrava um diário, enviava relatórios para família. Aos poucos, fui
realmente entrando no caminho (ou o caminho foi entrando em mim) e a jornada se
tornou cada vez mais interior. Caminhava com o corpo, andava com a alma. Pararam
as fotos, começaram os significados. Demorou um pouco para o processo iniciar,
era preciso me desligar do trabalho, celular, noticiário, família, pra sobrar
tempo e conseguir entrar em mim.
Com a quarentena o inicio foi parecido. Um mundo de
novidades na tela do computador. Apesar de a pandemia estar dizimando milhares
de pessoas, havia filmes, livros, shows, palestras, para aproveitar enquanto
estivesse confinado entre quatro paredes. Desta vez nem precisava caminhar,
alojar em albergues, passar fome ou ter bolhas nos pés. Bastava sentar no sofá,
pegar um bom lanche, ligar o ar condicionado, assistir uma comédia engraçada e
fugir da triste realidade que arrasava o planeta. Dormir até tarde também serviu
como uma boa rota de alienação.
Quando um animal é preso numa jaula, não fica bem,
não está em seu habitat natural. Embora nós, humanos, tenhamos evoluído e saído
da selva, a selva não saiu de nós, o instinto animal permaneceu adormecido.
Fomos aprisionados no conforto do lar e por melhor que seja nossa jaula, ainda
assim é uma clausura. Com o passar dos dias, o sofá macio de couro foi se
transformando em um catre desconfortável com função de divã. Comecei a conversar comigo e escutar a voz que
gritava dentro de mim, mas o barulho da televisão não deixava escutar. Percebi
que os aplicativos estavam me cegando, ensurdecendo e alienando. As iguarias e
guloseimas deliciosas alimentavam o corpo, mas envenenavam a alma. Desliguei os
aparelhos eletrônicos, tranquei a porta, cerrei os olhos, fechei pra balanço.
Algumas pessoas me perguntam o que estou produzindo
durante a quarentena. Escrevendo um novo livro, fazendo uma pós-graduação,
estudando para um concurso, aprendendo a cozinhar, preparando palestras, shows
de mágica? Nada disso. Não estou fazendo nada palpável, visível ou rentável,
mas isso não quer dizer que estou totalmente parado. Parar não significa morrer. Aquilo que nos
mata é não saber viver parados, e muitas vezes, parar e a melhor maneira de lá
chegar. Aproveito o longo tempo não produtivo no sofá para não fazer, mas para
sentir.
Sentir é um verbo que se conjuga para dentro, fazer
é conjugado para fora. Estou num retiro interior, escutando meu silêncio e fazendo
a contabilidade dos acertos e desencontros emocionais. Sentir, embora às vezes
possa machucar, serve como bussola para saber onde estou e para onde quero ir. Sentir
já é razão mais que suficiente para parar. Senti de tudo um pouco. Indiferença,
desrespeito, descaso, desamor, falsidade, desprezo, medo, abandono, ironia,
carência, vergonha alheia, raiva. Não queria ter sentido, mas aconteceu. Quem
mandou desligar a televisão e parar pra fazer um balanço? Senti também carinho,
consideração, amizade, amor, simpatia, admiração, apego, fraternidade,
compaixão, doação, acolhimento, coragem, saudade e principalmente falta. Não
falta de ar, falta daqueles que se foram e falta daqueles que disseram que
vinham e nem vieram.
Espero conseguir fazer um balanço legal disso tudo.
Não tenho grandes expectativas, já que o surgimento ou desaparecimento destes
sentimentos não depende só de mim. Estou fazendo a minha parte, que por
enquanto é fechar pra balanço. Não está fácil lidar com tudo isso. Sinto-me
confuso, inseguro, não tenho ideia do que fazer para que saiamos dessa pandemia
com um planeta mais sensível e justo. Se a solução dos problemas fosse caminhar
1000 quilômetros, já estaria na estrada. Quando vai terminar o balanço? Não sei, mas abrir
as minhas portas não vai ter nada a ver com o desenvolvimento de uma vacina
efetiva, descoberta da cura ou eliminação do vírus. O furo é mais embaixo.
Tenho uma orquídea em minha casa que passa o ano
inteiro fechada. Uma vez por ano, geralmente na primavera, abre uma linda flor,
que ficou doze meses se preparando pra embelezar a sala. Talvez este ano não
abra. Será assim também comigo, quando for a hora, o balanço termina e as
portas abrem. Já se passaram seis longos e sentidos meses.