quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Navegar é preciso, amar não é preciso

 

Quando cursava a Faculdade de Medicina, era comum sentir os sintomas das doenças que estava estudando nos livros e me assustar pensando estar contraindo a enfermidade. Tão logo aprendia que o enfarto do coração podia apresentar como primeiro sinal um formigamento no braço esquerdo, qualquer coceira que se apresentasse no membro, já poderia ser o inicio do fim.

Assim, fui sendo acometido fictícia e gradualmente de hepatite, diabetes, gangrena, apendicite, hérnia, úlcera, praticamente quase todas as páginas dos livros de patologia, com exceção das moléstias das disciplinas de ginecologia e obstetrícia. Somatização clássica.  Na medida em que fui adquirindo mais conhecimento, os sintomas desapareceram sem tratamento algum. A sapiência e a prática foram os remédios milagrosos.

Com a Filosofia Clinica o processo não foi muito diferente. Ao estudar o tópico oito da Estrutura de Pensamento, Termos Unívocos e Equívocos, meus neurônios se atrapalharam. Unívocos são termos que só tem um significado, enquanto equívocos são palavras ou expressões com sentidos diferentes, podendo gerar dubiedade, confusão, desorientação, dúvida e enganos existenciais.

Quando João diz que ama Maria, o que isso significa? Amor é um termo unívoco ou equívoco? O que é amor para João? Maria entenderá e sentirá da mesma forma que João, ou para ela amor pode possuir significado diferente?

Algumas pessoas não convivem bem com a dúvida, incerteza ou dubiedade, necessitam de precisão, objetividade, clareza, transparência, assertividade. Se for o caso de Maria, talvez seja vital  enraizar o pensamento de João para apaziguar sua alma. Para outras Marias espalhadas pelo mundo, o fato de escutar a palavra amor, já é mais que suficiente para cativar seus corações apaixonados.

Parafraseando a enigmática frase de Sócrates, “Só sei que nada sei”, quanto mais estudava, mais dúvidas surgiam. Amor seria um termo Universal, Particular ou Singular? Existe o amor familiar incondicional, o amor próprio, o amor romântico, o amor empático universal, o amor amizade companheiro e por ai vai. Quando Maria reclama e diz a João que ninguém precisa saber quem ele ama, mas ela precisa saber, sentir e ouvir, de qual amor está falando?

Em Medicina, diagnósticos e tratamentos são realizados de maneira lógica e racional, mecanizados, baseados em evidências científicas comprovadas em milhares de pacientes examinados e tratados com êxito. Em Filosofia Clinica a caminhada é diferente, qualquer sentimento, dor ou equivocidade deve ser encarado de maneira única, incomum e original, sempre relacionado com a história de vida de cada pessoa. A doença pode ser universal, mas o sofrimento é sempre singular. Nenhum dos métodos é excludente ou melhor que o outro, porém quem foi treinado a pensar de modo cartesiano pode se perder no convívio sentimental e vice versa.

Quando uma pessoa fica doente fisicamente, há um corpo para curar, uma memória para perdoar, uma história para agradecer. Medicina, Direito, Engenharia são atividades nobres, necessárias à vida, mas a poesia, a beleza, a arte, o romance e o amor são as coisas pelas quais vale a pena viver.

Alguns mentores emocionais fazem cálculos matemáticos e inventam fórmulas mágicas procurando um significado para o amor, mas acabam perdendo tudo que está acontecendo sensorialmente, sequer percebendo que o amor pode ser o melhor e mais bonito mal entendido que duas pessoas podem cometer.

Outros levam o amor para o lado da busca, afirmando que amar é uma escolha que não possui dúvidas, devendo ser regado todos os dias. Aqui também há controvérsias, pois regar todos os dias não garante amor eterno, só assegura a felicidade do jardineiro, embora alguns afirmem que todo amor seja para sempre, pois nosso passado é tudo o que podemos saber sobre eternidade.

Dependendo de quanto e como o amor foi inscrito e agendado no intelecto, a capacidade de amar pode estar comprometida. Quem sabe deveríamos tentar acreditar mais no amor e menos na idéia de amar? Segundo alguns pensadores, o amor não é uma propriedade de quem sente, é uma transferência definitiva para quem é amado.

São infinitas as formas e disfarces do amor. O filósofo dinamarquês Kierkegaard enveredou para o lado da Epistemologia afirmando que o amor se reconhece pelos frutos, sendo uma experiência prática, jamais teórica. Pode-se fazer uma bela teoria do amor, mas quem nunca sofreu de amor, jamais será salvo do vazio que é nunca ter sofrido por amor.

Diante desse imenso ponto de interrogação que é o amor, reformulei minhas crenças: estou me dando o direito de ser menos lúcido e mais lúdico, não pensar tanto e me cobrar menos ainda, deixando algumas certezas para trás e outras interrogações para compreender depois. Prefiro ter questões que não podem ser respondidas a respostas que não podem ser questionadas. Desisti de atracar o barco e resolvi aproveitar a paisagem. Navegar é preciso, amar não é preciso.

 

Um comentário:

  1. Há alguns anos aqui em SP assisti a palestra do Amyr Klink, ele contou que a filha pulou no mar gelado, pegou um bote, resgatou e perguntou o motivo dela ter pulado no mar. " Ela disse que queria saber se eu voltaria para buscá-la" Aconteça o que acontecer largamos tudo e voltamos para resgatar, cuidar e proteger quem amamos, navegar é preciso, amar e ser amado é uma bênção. Beatriz

    ResponderExcluir