domingo, 27 de dezembro de 2015

ACORDAR


Dormir é uma necessidade fisiológica. A cada 16 horas o corpo exige uma pausa para descanso. Neste período ocorrem liberação de hormônios, sonhos e recuperação do cansaço e fadiga. O sono é um poderoso revigorante físico e emocional, diminuindo o estresse, melhorando a memória, o raciocínio, rejuvenescendo a pele, controlando o apetite.

Acordar é diferente. Acordar é uma benção, um presente. Normalmente, depois de seis a oito horas adormecidas, as pessoas acordam. No entanto, as mais diversas religiões afirmam que durante o sono um pedaço da alma, ou sua totalidade, se desprende do corpo e, conforme a vontade divina, retorna ou não para que o individuo possa acordar. Por isso, fiéis rezam antes de dormir, pedindo que sejam protegidos pelo altíssimo durante o sono e abençoados com o acordar.

Como as certezas podem mudar de lugar, para os insones a regra é outra, dormir é considerado uma benção e ficar acordado, uma maldição.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Pais não morrem, ficam invisíveis

Aos poucos foi perdendo as forças. Não tinha mais energia para caminhar e, contra vontade, tornou-se refém de uma cadeira de rodas. Não bastasse essa perda de autonomia, ficou dependente de um cateter contínuo de oxigênio para respirar.

Assim evoluiu nos últimos dois anos a doença de meu pai - fibrose pulmonar – enfermidade incurável, que gradativamente vai entupindo os alvéolos, prejudicando a respiração e tirando o fôlego para toda e qualquer atividade física. Apesar da asfixia progressiva, permanecia completamente lúcido e consciente de seu prognóstico.

Ainda não consigo precisar se esta clarividência quanto a seu futuro foi algo bom ou ruim. Para mim, a despeito da tragédia que se anunciava, foi uma benção. Tive tempo de resgatar toda uma coleção de afetividade que havia ficado para trás e, sem pressa, me despedir um pouco a cada dia. Nem todos podem ter esta oportunidade.  Para ele, sei que alguns momentos foram difíceis. Não raro o surpreendíamos chorando ou implorando por socorro e um pouco mais de ar. Nunca havia se imaginado doente, não queria nos dar trabalho, não sabia como se comportar, muito menos como enfrentar a doença que o consumia. Tampouco nós – esposa, filhos e netos.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A gente não faz amigos, reconhece-os.

Facebook informa: Carlos Alberto lhe enviou uma solicitação de amizade.

Querido Carlos:

Agradeço sua solicitação, mas infelizmente não  posso aceitá-lo agora, de imediato, em minha lista de amigos. A amizade, assim como a confiança, não chega através de um mero pedido. Envolve um elenco de condições que não cabem na formalidade de um protocolo. Não são qualidades, ações ou comportamentos adequados ou rigidos que vão determinar o vínculo da amizade.

São os sentimentos que brotam em conjunto, sem preocupações acerca de como ou porque iniciaram ou quanto tempo vão durar. Atingida esta cumplicidade inexplicável, surge um princípio de verdade e a amizade torna-se vitalícia.


Meus amigos só deixarão o posto quando morrerem, e torço para que este dia nunca chegue. Até mesmo quando não estiverem mais nesta vida terrena, a amizade continuará nos unindo.

Procuro fazer com meus amigos o que faço com bons livros. Guardo-os com todo o cuidado e carinho onde os possa encontrar. Sei que quando precisar, estarão ali, a meu lado. Incondicionalmente. A recíproca também é verdadeira, não os abandonarei, tampouco os deletarei, por menor que seja o tempo que a mim dediquem. Como podes ver, é uma lista sagrada e seleta. 

Quando lançaram o facebook, achei interessante acumular o maior número possivel de amizades virtuais. Pensava utilizar essa midia social como ferramenta para divulgar meu trabalho. Aceitava todas as solicitações e pedia para ser incluido em várias listas. A experiência não me agradou. Logo atingi a cifra de quase mil "amigos desconhecidos". Inventei este apelido afetuoso para designar pessoas ou entidades com as quais nunca troquei duas palavras mas que anualmente enviam mensagens automáticas de “Parabéns” ou “Felicidades” na data do aniversário e curtem toda e qualquer postagem.

Já que estamos em processo de inicio de amizade, vou aproveitar e fazer uma confidência: não curto mais este tipo de relação e pretendo realizar uma depuração nestas aproximações ilusórias e cortesias mecânicas.  Aristóteles, filósofo grego, já dizia: "quem tem muitos amigos, não tem nenhum".
Portanto, não acho justo incluí-lo numa lista tão distante e despretensiosa.


Mas posso te fazer uma boa proposta. Que tal te colocar na minha lista de conhecidos? Todas minhas amizades começaram assim: nos cruzamos por acaso, fomos estreitando os laços, e, quando nos demos conta, já éramos amigos. Não sei quem disse a frase, mas gosto dela: “a gente não faz amigos, reconhece-os”.

Por favor, não me interprete mal pensando que sou esnobe, arrogante ou pernóstico. Estou apenas valorizando uma verdadeira amizade e dando-lhe a devida importância no contexto desta tendência atual de encontros e desencontros cada vez mais virtuais.

Numa época em que as pessoas se aproximam para assaltar, reclamar, pedir, bisbilhotar a vida alheia, ou, no sentido inverso, não chegar perto de ninguém, isolando-se em seus próprios mundos, um pedido sincero de amizade precisa ser celebrado e levado muito a sério. Ser honrado com o título de amigo é uma conquista inestimável e digna de poucos.

Voltando a pergunta inicial: quero ser seu amigo? Claro que sim.  Tomara que sim. Vamos nos esforçar para que sim. O resto deixamos por conta da vida, do tempo, da sorte.

Muito, mas muito agradecido mesmo pela proposta, fiquei envaidecido com a distinção da escolha. Forte abraço.



sábado, 21 de março de 2015

Vida de cão


    Como vai amigo Tião?


Estou escrevendo pra te contar as coisas estranhas que estão acontecendo nas minhas férias aqui na praia de Jurerê Internacional. Já ouvistes falar? É um lugar fantástico, nunca vi nada igual. Praia de gente rica e famosa. Mar azul, calmo, água quente, areia fininha, lanchas, iates, vendedores ambulantes, comida e bebida à vontade. Mas não pude aproveitar nada disto, nem vais acreditar.

Logo que chegamos no prédio onde iríamos veranear, bem em frente à praia, já estranhei. Parecia uma vitrine de loja. Todo envidraçado, com mármores, espelhos e lustres de cristal enormes. Quase fiquei cego de tanta luz e mal conseguia caminhar naquele piso escorregadio. De repente, apareceu um homem vestido de terno preto e gravata, me pegou no colo e me carregou até nosso apartamento. Nunca ninguém havia feito isto comigo, e por pouco não o mordi de tão assustado que fiquei.

Depois me explicaram que não permitem animais circulando nas áreas comuns do prédio. Dizem que podemos morder alguém, fazer baderna, quebrar os enfeites e sujar o piso das residências. Afinal de contas, fomos domesticados ou não?

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Enquanto se espera


No passado, médicos acreditavam que pacientes, por se encontrarem enfermos, não tinham outros compromissos e prioridades, a não ser esperar pelo atendimento do doutor, que com o consultório sempre abarrotado, lhes socorreria na medida do possível. Do alto de seus tronos, criaram então salas de esperar. Colocaram algumas cadeiras e revistas velhas e julgaram que a resignação dos pacientes seria uma constante eterna.

 
Os tempos mudaram. Surgiu o telefone, a recepcionista, a secretaria, o computador, o celular, o marketing, a gestão, a concorrência, os planos de saúde, a mídia, a especialização, e a sala de espera precisou se readaptar. Não poderia continuar sendo um amontoado de cadeiras dispostas ao redor de uma sala ou corredor, onde pessoas esperavam até que algo acontecesse.

 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Médicos e detetives


O diagnóstico de uma doença é como uma tarefa sherlockiana. Cada paciente fornece uma série de sinais e sintomas exclusivos, que precisam ser interpretados para se chegar a um diagnóstico.  O paciente vai contando uma história, mostrando algumas pistas, deixando alguns sinais, para que sejam investigados. Cada caso é um caso.


O médico vai sendo desafiado todo instante a entrar no mundo do paciente e conhecê-lo. Pode perceber, por exemplo, que a dor referida não coincide com o local da lesão, que não existe ferida alguma que justifique aquele pranto ou dor, que a chaga se apossou do paciente, mas a causa está na família, que os sinais e sintomas direcionam para o lado oposto da história relatada, que não é a morte o maior medo do paciente, que não é a doença o motivo do sofrimento. Como decifrar estes enigmas?

Ao entrar realmente no mundo do outro, identificando-se com seu modo singular de viver, não se volta o mesmo. Volta-se com todas as experiências adquiridas. Alguns médicos não suportam esta pressão, preferem não se envolver e seguem sua carreira diagnosticando e tratando seus pacientes de acordo com os compêndios e classificações generalistas. 
Outros, imbuídos do paradoxo socrático (só sei que nada sei) e do estilo investigativo sherlockiano,  não se prendem ao mundo das aparências e dos manuais: investigam, surpreendem-se, colocam-se no lugar do outro, lutam e torcem por seus pacientes, que sentem e sabem não estar mais sozinhos em suas jornadas. Desta forma, juntos, médico e paciente, passam a procurar um final feliz. Nem sempre a cura, nem sempre um final, mas quase sempre a busca do não sofrer.

Um pedacinho de meu novo livro. Ainda não disponível. Aviso quando do lançamento, provavelmente no primeiro semestre 2015.