Muita gente tem medo de
mim. Não sou mal encarado, bandido, malfeitor, delinquente ou brigão. Nada
disso. Sou médico anestesiologista, trabalho em um hospital e incontáveis vezes
ao me apresentar aos pacientes, fui recepcionado com frases do tipo chegou o
perigoso, tenho medo da anestesia, tenho um conhecido que morreu da anestesia e
por ai vai.
É o preço que pagamos por um passado onde a anestesia era realizada de maneira empírica, sem instrumentos apropriados, conhecimento especializado ou medicamentos seguros e, por conta disso, ocorreram inúmeros acidentes. Naquela época, quando uma pessoa necessitava ser submetida a uma operação, a família profilaticamente rezava e chorava na porta do centro cirúrgico esperando por uma desgraça iminente. Hoje anestesia é um procedimento extremamente seguro, praticamente isenta de riscos. Os tempos mudaram, porém o medo teima em persistir.
Medo é uma palavra muito
ampla, inexata e sujeita a equívocos, precisava saber especificamente o que a
anestesia possuía de cruel, desumano ou maligno que tanto assustava as pessoas.
Os temores foram os mais sortidos: morrer, sentir dor, ficar sequelado, falar
bobagens, acordar durante o procedimento, expor suas partes intimas, deixar a
família sem noticias, acordar com uma cicatriz enorme, operar o membro errado. Efetivamente
tudo isso ocorreu no século passado, mas não neste. Por que o medo ainda
perdurava na mente das pessoas?
Os pacientes já haviam
sofrido aquelas experiências traumatizantes e tinham medo que se reproduzissem ou
estavam relatando informações de outros? O sentimento era original ou importado
de outras pessoas? Quase a totalidade
relatou que ouvira falar, sequer lembrando quando ou onde aconteceram os fatos.
O medo da anestesia demonstrou ser um sentimento de auto preservação
influenciado por relatos de terceiros e não por convicções próprias.
Cabe aqui uma pausa antes
de enfrentarmos o medo da anestesia. Teremos que nos armar. Não com pistolas,
facas ou metralhadoras, mas com conhecimento. Necessitamos diferenciar
sentimento de emoção, não são a mesma coisa.
Emoções são estados
corporais detectados externamente. Raiva, medo, desejo sexual são exemplos de
emoções que se manifestam objetivamente na expressão facial, cor da pele,
timbre de voz, gestos, odor, pupilas e por ai adiante. Sentimentos são
estados internos, subjetivos,
particulares. Somente depois de experimentar uma emoção objetiva através de
alterações no corpo é que a pessoa pode tomar consciência daquilo que está lhe acontecendo.
É o processo de transformação de emoção em sentimento.
Sentimentos são conhecidos
apenas por aqueles que os possuem. Conheço os meus sentimentos, não os seus,
exceto pelo que você me conta sobre eles. Ainda assim, seus sentimentos são só
e exclusivamente seus, não consigo sentir igual a você. Mostramos nossas
emoções, falamos sobre nossos sentimentos.
Certa vez recebi um
conselho: “As melhores coisas que fiz na vida, foram feitas com medo”. Então agora,
já aparelhados, voltemos a luta contra o medo da anestesia. O medo do perigo é
mil vezes pior que o perigo real, justamente porque o medo não costuma ser
baseado em experiências próprias. O medo nos é condicionado por influência de
terceiros. Seria justificado ter este medo?
Pesadelo é um sonho no
qual temos a chance de enfrentar nossos medos, mas somos tão pequenos perto
desses medos que acordamos aliviados pensando que aquilo nunca vai nos
acontecer e perdemos a grande chance de provar que somos capazes de conviver
com aquilo, por pior que possa parecer. Nossos antepassados temiam o fogo até
que um dia aprenderam a acendê-lo e controlá-lo.
Com o medo da anestesia é
mais ou menos assim que deve funcionar. Coloco-me na frente dos pacientes como
o representante da anestesia que tanto temem e tento deixá-los confortáveis
para expor seus sentimentos e até me atacarem se for o caso. Escuto com toda
atenção. Desculpem a metáfora, mas o cão não ladra por valentia e sim por medo.
Quem vive no medo precisa de um mundo pequeno, um mundo que possa controlar.
O medo é covarde, se o
enfrentarmos, em noventa por cento dos casos, ele deve bater em retirada. Nos
restantes dez por cento, se estivermos suficientemente seguros, temos a chance
de vencê-lo.
Dou aos pacientes o máximo
de controle, coragem e confiança que possam alcançar. É preferível que
enfrentem o medo do desconhecido que permitir que cheguem no momento da
cirurgia inundados de dúvidas. Aos
poucos vão baixando as armas, relaxando, descruzando braços e pernas, começam a
sorrir, diminui a tensão.
Encararam o inimigo
imaginário e viram que ele não morde, pelo contrário, zela por eles. Foram
anestesiados e nem perceberam.
. Ouvi alguns relatos sobre anestesia de 60 anos atrás, muito interessante os procedimentos e o retorno a dita realidade. Quanto a minha experiência, foi algo muito estranho, mesmo com muito medo do desconhecido e com náuseas pareceu-me muito natural. O médico que mandava o tal do Gilberto me aplicar tal coisa, para eu parar de me meter na conversa do obstetra. Após me apresentarem o bebê , eu saí fora do ar por alguns minutos. Ao me transferirem para maca, já acordei com muita dor. Na tal de sala de recepção, se é que se pode chamar aquilo de recuperação, a dor era também companheira das outras pacientes que me assustaram muito. Eu calei e aguentei por mais de 2h aquela tal dor do pós-operatório, que posso afirmar, jamais esqueci. Então, posso afirmar que a anestesia é muito necessária até mesmo para recuperação destas ditas " pacientes" ( como pude aguentar tanta dor, sem fazer coro com as demais impacientes). Hoje em dia, quero anestesia até para tirar os pontos de uma cirurgia de mão, virei uma covarde em se tratando de dor.
ResponderExcluirJá pensou o que seria da vida se o Palhaço tivesse medo da risada? Quanta coisa deixaríamos de sentir e viver!
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