domingo, 20 de março de 2022

Saber ouvir é quase conversar em silêncio

Certa vez estava fazendo uma palestra e, com o canto do olho, percebi uma movimentação estranha na platéia do auditório. Não consegui prestar muita atenção porque estava focado na minha fala, mas deu pra ver que era restrito a um pequeno grupo de pessoas, especialmente uma criatura que não parava de se movimentar.

Quase interrompi meu discurso para solicitar que a pessoa ficasse quieta, mas por sorte, ou por uma apreciação mais demorada, constatei que se tratava de um grupo de surdos que estavam acompanhando minha palestra através de um tradutor, que  utilizava  gestos e sinais para se comunicar na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras). Por pouco não cometi uma desfeita com aquela comunidade que ali estava por um admirável projeto de inclusão social.


Nossa vida é muito barulhenta. A cidade faz barulho. As pessoas fazem barulho. Ouvimos alaridos, buzinas, motores, tambores, rádios, gritos, choros, sirenes. Ao que parece, já nos adaptamos no meio da zoeira. Só que o barulho faz com que a gente não se ouça direito. O barulho nos tornou meio surdos e, para que conseguíssemos nos entender melhor, começamos a falar mais alto, fazer gestos e, para culminar, complementamos com leitura labial, agora prejudicada pelo uso de máscaras.

Tivemos que aprender a falar com as mãos e agora estamos dependentes, não sabemos mais nos comunicar sem ficar gesticulando. Tente conversar com as mãos nos bolsos e sentirá a dificuldade de expressão. É como se algo estivesse lhe trancando as cordas vocais e o pensamento.

De certa forma, perdemos parcialmente a capacidade de escutar com os ouvidos. Falamos com as mãos porque ouvimos também com os olhos. Os olhos são nossos ouvidos acessórios, resgatam aquilo que não conseguimos escutar direito. Mas não é só por isso que gesticulamos ao falar.

As pessoas só ouvem o que estão a fim de escutar. Ouvir com atenção é uma atividade rara, as pessoas concentram a maior parte de sua atenção naquilo que estão pensando. Enquanto um fala, o outro, ao invés de escutar, já está pensando no que vai responder ou comentar.

Vivemos num momento de riqueza de informação, pobreza de comunicação e carência de atenção. Diante disso, usamos o recurso de pantomimas com as mãos com o intuito de chamar a atenção do ouvinte aéreo em seus pensamentos. Existem ainda os que falam tocando o outro para que a atenção alheia não se disperse. Estes últimos são os que ironicamente chamamos de chatos.

Escutar é um ato primitivo de amor, em que a pessoa se entrega à palavra de outro, tornando-se acessível e vulnerável àquela palavra. É preciso aprender a ouvir mais com o coração que com os ouvidos.  Ouvir as palavras entreditas, os olhos, os gestos, os passos, o silêncio. Saber ouvir é uma virtude, querer ouvir é amor.

Saber ouvir é uma arte, mas não é para todos. Uns não escutam porque não podem, outros não ouvem porque estão em sintonia diferente e outros mais, simplesmente porque não estão interessados em ouvir.  Saber ouvir pode ser até melhor que saber falar. Saber ouvir é quase conversar em silêncio.

Escutamos metade do que nos é dito      -       50%

Ouvimos metade do que escutamos        -       25%

Entendemos metade do que ouvimos      -       12,5%

Lembramos metade do que entendemos -      6,25%       

5 comentários:

  1. Não é preciso mostrar beleza aos cegos, nem dizer verdade aos surdos. Basta não mentir pra quem te escuta, nem decepcionar os olhos de quem te vê! Lya Luft
    Hermoso Texto

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  2. Ótima reflexão. Quando comecei na Filosofia Clínica, uma pessoa me perguntou qual o motivo de eu gesticular tanto com as mãos enquanto falava. Expliquei que havia feito por 3 anos o curso de LIBRAS, para atender um aluno deficiente auditivo. Passado uma semana, ela me perguntou novamente, mas qual era mesmo o motivo, que tu movimenta tanto as mãos quando falas? Poderia dizer que, de alguma forma, ela entra nos percentuais definidos acima. Poderia eu afirmar que o contexto em que é inserido o deficiente é bem diferente do contexto do ouvinte. Como os deficientes auditivos não possuem iguais níveis de audição, e por isso, alguns são barulhentos, parecendo muitas vezes irritados. Produzem sons dos mais variados com muita facilidade como: gritos, exclamações, arrastam cadeiras, atiram materiais, batem com pés e mãos com desenvoltura. Tudo aquilo que seria considerado ético ou estético num contexto formal, cai por terra. Alguns que perderam a audição ainda na infância e que possivelmente tenham guardado fragmentos da memória auditiva, ainda tentarão falar, outros não tem nem ideia de como controlar este limites sociais. Aprender a ouvir é muito importante e difícil, até para os ouvintes. Igualmente, fazer o outro compreender aquilo que queremos expressar, para alguns, isso será tão difícil quanto, ou muitas vezes impossível. Aqui temos uma bela questão para ser tratada na Analítica de Linguagem.

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  3. As cidades perderam o silêncio. Não é mais possível escutar o silêncio vivendo na cidade.

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  4. Existem silêncios que falam e falas que nada dizem. A espera de um telefonema que não chama, a mudez após uma ofensa machucam mais que qualquer palavra dita. O silêncio é poderoso. Pode ser escutado e inclusive fotografado e tocado.

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  5. 💌

    As plantas vivem em um mundo de terra, água, ar e sol.
    Os animais vivem em um mundo de corpo e seus sentidos.
    Os seres humanos vivem em um mundo de suas próprias palavras.

    Os sábios nos chamavam de "O ser falante", dizendo que nossa alma está cheia de palavras.

    Quando nossas palavras nos deixam, nosso próprio ser sai de dentro delas. Conquistamos com elas.
    Declaramos nosso domínio sobre a Criação com elas.
    Nossas palavras nos dizem que existimos.

    Para nós, nada existe de verdade até encontrarmos uma palavra para isso.
    Todos os nossos pensamentos sobre cada objeto e cada evento são pensamentos de palavras. Nosso mundo não é um mundo de sensações e estímulos, mas de palavras.

    Construa seu mundo com palavras preciosas. Preencha seus dias com palavras que vivem e dão vida, sem esquecer que existem momentos em que a palavra deve silenciar e ser trocada por um carinhoso abraço.

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