sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O domador, o mágico e o palhaço em mim

 

O que fazer para aguentar o isolamento social desta pandemia? Para mim, escrever é uma maneira de conviver em paz com a solidão e o isolamento. Posso estar trancado dentro de um quarto por horas a fio, posso não ver ninguém por vários dias, mas se estiver escrevendo não estou só, sequer no quarto estou. Mais que isso, quando escrevo, escapo temporariamente deste mundo de competição, pandemia, corrupção, preconceito, desigualdade e outras coisas que me fazem mal e entro no meu mundo encantado, onde crio cenários, personagens e histórias que me dão energia pra aguentar e enfrentar a dureza da vida.

Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “A Arte torna a vida suportável”, ou seja, através destas escapadelas esporádicas da realidade o ser humano consegue a estabilidade necessária para suportar as adversidades cotidianas. A meu modo, procuro ficar o máximo de tempo no mundo cativante da poesia, musica, dança, cinema, teatro, pintura, mágica. Poderia escolher outro caminho e me apartar da realidade com drogas, álcool, depressão, mas não é a minha praia. Meu bálsamo para a vida é a arte.

Antigamente, arte boa era aquela que imitava fielmente a realidade. Paisagens, fotos, figuras religiosas. Com o modernismo começam a aparecer figuras sem formas definidas e cenas sem lógica, rejeitando completamente o academicismo. Vanguardistas de plantão aproveitaram esta onda de revolução estética para transmitir ideias políticas e éticas de maneira subliminar.  Como muitos não se deram conta disso, artistas precisaram ser ainda mais ousados e diretos. Para os menos atentos, a arte passou a ser uma espécie de loucura tolerável, onde malucos poderiam se expressar sem maiores consequências.

Só que não. A arte nunca é uma experiência banal para quem a realiza. A loucura da arte sempre foi muito petulante e perigosa, veladamente ela traz consigo a capacidade de provocar uma rachadura na visão arcaica das pessoas, alterando a sensibilidade e a percepção das coisas, revelando outros jeitos de encarar a vida e o mundo. A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade – Pablo Picasso.

Meu pai era aficionado por circo e cinema. Jamais perdia uma estreia de filme ou um domingo com a família, comendo pipoca e algodão doce no camarote do circo. Acabou fazendo amizade com a comunidade circense. Quando vinham fazer temporadas de shows em Porto Alegre, já sabiam que haveria um amigo de confiança que lhes acolheria, um médico que os atenderia e uma família de espectadores para quase todas as sessões. Certa ocasião houve um incêndio enorme no circo, tudo perdido. Animais foram para o zoológico e artistas ficaram acampados em nossa casa.

Palhaços, mágicos, trapezistas, bailarinas, equilibristas, contorcionistas, posso dizer que quase nasci num picadeiro de circo. Na época, os irmãos Robattini estavam com seu espetáculo na cidade e fizeram uma proposta a meus pais. Como não possuíam filhos, disseram que gostariam de me adotar, pois quando crescesse, seria o astro principal do circo, um grande e famoso domador de leões.

Delicadamente meus pais recusaram, respondendo que minha vocação não seria domar e sim libertar. Iriam me preparar para a liberdade de voar e não para as grades de gaiolas ou jaulas. A amizade das famílias não se abalou nem um centímetro e o gosto pelo circo só cresceu. Com dez anos de idade comuniquei a meus pais que não queria mais ir à escola, desejava ser mágico do circo e viajar pelo mundo fazendo carros aparecerem, elefantes desaparecerem, serrando mulheres ao meio, levitando no palco. O que mais um menino de dez anos pode desejar da vida?

Não foi fácil para nenhum dos lados. Se meus pais pregavam a liberdade, como recusar o sonho de um filho de abrir a mente das pessoas, criando fantasias e praticando a arte da impossibilidade? Por outro lado, não queriam se separar de mim e também sonhavam em ter um filho com diploma universitário. Depois de muitas lágrimas derramadas, finalmente chegamos a um acordo. Durante as férias escolares passaria uma temporada no circo, aprendendo mágicas, convivendo com artistas e animais ferozes, morando em barracas, montando e desmontando lona, picadeiro, arquibancadas. Foi um período muito feliz, inesquecível. Contava os dias para entrar em férias, tirar o uniforme escolar e ir para o mundo encantado do circo.

Aos dezoito anos tive que tomar uma decisão determinante. Trabalhar no circo ou fazer vestibular. Pode até parecer que foi uma escolha simples de fazer, mas não foi bem assim. Havia muita pressão para não ser um artista de circo itinerante.  Confesso que ser médico era um trabalho que também me encantava, pois curar doenças, aliviar dores, sofrimentos, renovar esperanças de vida, de certa forma, eram mágicas transcendentes e libertadoras, tão ou mais grandiosas que os truques de ilusionismo. Só que o circo era mágica em natura. No circo respirava fantasia, na medicina o cheiro era de remédio.

Acabei optando pela faculdade de medicina. Escolhi ser anestesiologista, profissional que tem a destreza pra fazer uma pessoa dormir e acordar sem dor. E se possível, tendo um sonho bem legal. Encarava isto como uma espécie de hipnotismo químico. Para muitos, medicina é uma ciência, para mim, medicina também é uma arte. A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas. Não fui um domador de leões, mas aprendi a amansar a dor. Não fiz uma mulher levitar no palco, mas tiro muita gente do leito hospitalar. Não fui palhaço, mas acabei com muitas lágrimas.

E o circo? Tenho saudade, sempre que tem circo na cidade, volto lá pra ser criança e dar boas risadas. Quando a vida mostra seu lado triste, me prende dentro de casa, me afasta dos amigos, lembro que até o palhaço mais alegre, pode chorar em um dia de folga. Nestas horas, preciso de um circo pra me encontrar. Com lápis e papel chamo o circo pra bem perto.  E se der, coloco o domador, o mágico e o palhaço dentro de mim.

 

    

 

 

 

11 comentários:

  1. Sensacional. Emocionante. Um de seus melhores artigos. O domador, o mágico e o palhaço dentro do médico. Grande sacada. Parabéns.

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  2. Dr Ildo
    Que infância mais feliz, convivendo com a alegria do circo!
    Ótimas lembranças!
    Muito bom! Parabéns!
    Abraços

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  3. Que maravilha! Minha loucura se perpetuou nesta pandemia... Adoro tuas sacadas, precisa ser um ótimo artista ao se expressar com tantas habilidades nas palavras sejam elas nas falas como nas escritas. Me encontrei em: "Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “A Arte torna a vida suportável”, ou seja, através destas escapadelas esporádicas da realidade o ser humano consegue a estabilidade necessária para suportar as adversidades cotidianas." I.M. Tenho tentado viver em escapadelas, mas no entanto me encontro foragida da realidade, a arte tem sido meu suporte de sustentação para estes momentos de distanciamentos. Além do mosaico, o entalhe retornou a minha nova realidade e com muita força. Poderia falar muito sobre o efeito da Ressonância Schumann que vivo, , o tempo voa... Porém sinto profunda saudades de tudo aquilo que não posso viver...

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  4. Meu Amigo
    Foi com uma enorme surpresa que li seu artigo.
    Nem pude acreditar meu amigo de infância, meu parceiro de aventuras do circo, quanto tempo, quantos anos...
    Confesso que esperava ansioso por dezembro quando você chegava ao circo e além de presentes trazia sua mala repleta de truques de mágica.
    Diversão garantida!
    A cada cidade nova, nós corríamos as ruas, avisando o Circo chegou!
    Bons tempos em que não tínhamos responsabilidades e podíamos nos divertir no mundo mágico do Circo.
    Infelizmente, os espetáculos foram diminuindo...meus pais envelheceram deixaram o circo e, eu hoje trabalho em feira aqui em Belém do Pará.
    Satisfação enorme te reencontrar.
    Por instantes voltei a sentir toda magia que o Circo tem, só quem conhece sabe.
    Feliz o homem que teve sua alma tocada! Ele nunca mais será o mesmo!

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    1. Não estou acostumado com tecnologia, não assinei
      abraços
      Francisco Ferreira Santos

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  5. No circo da vida, existem muitos palhaços e raríssimos mágicos.

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    1. Assim como existem domadores, feras, mulheres barbadas, trapezista, equilibrista. Aliás equilibrista tem um monte gente querendo aparecer o quem não tem..e o que não é.

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    2. Bem colocado! Vivemos sim, num circo. E cada um tem o.seu personagem. Ou alguém duvida disso? Eu confesso que me sinto o cara da pipoca. Vendo, não roubo, me divirto e assisto o show Sandro

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  6. que tristeza o que aconteceu com o circo de soleil. Fechou. Tomara que não seja em definitivo. A vida sem circo perde o brilho.

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  7. Sabe o que eu gostava do circo de antigamente? O cheiro de serragem que colocavam no piso pra não sujar os pés de barro. O cheiro dos animais. Lembro quando entravam os leões, aquele cheiro até hoje está nas minhas narinas. De vez em quando vinha um urso ou um elefante e aquele cheiro forte. Não sei se era de sujeira ou do próprio animal, mas são lembranças da infância no circo que jamais esquecerei. Janete

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    1. Prefiro o circo sem animais!
      Melhor assim!

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