sábado, 16 de maio de 2009

Tragédia vista de perto é uma desgraça. Distante é uma comédia.


Enquanto aguardava o sinal de trânsito trocar do vermelho para o verde fiquei observando bem lá na frente, um menino que fazia embaixadas com uma pequena bola de futebol. Foi um espetáculo de um ou dois minutos. Um verdadeiro show. O menino jogava como um profissional e tinha no máximo quinze anos de idade. Estava na esquina tentando ganhar algum dinheiro com suas habilidades, mas muito poucos deixavam alguma moeda como reconhecimento ou incentivo.

Pensei em quanto valia aquele espetáculo, retirei da carteira dez reais e entreguei ao menino. Poucas vezes vi uma expressão de tamanha alegria no rosto de alguém. Ele parecia não acreditar no que tinha recebido. O sinal trocou para o verde e tive que partir, mas ainda pude observar pelo espelho retrovisor os pulos de felicidade do garoto.

Não foi só o menino que ficou feliz. A alegria foi contagiosa e me contaminou. Nunca mais esqueci aquele rosto nem a sensação de satisfação e felicidade que o menino me passou. O bem que ele me causou certamente foi maior que o dinheiro que lhe proporcionei.

Alguns quarteirões adiante, um acidente de trânsito. Não era um espetáculo, mas o público era muito maior e mostrava mais interesse do que no show do menino.

Por que havia mais pessoas observando o acidente do que o show do menino? Tragédias chamam mais a atenção que alegrias?

Na Roma antiga, o governo promovia espetáculos como forma de manter os plebeus afastados das questões políticas e sociais. Era a famosa época do “Pão e Circo”. O povo não queria assistir cantores, bailarinos e equilibristas. Estádios lotavam para ver homens lutando entre si. No inicio as lutas tinham caráter religioso, mas com o passar do tempo, foram deixando o cunho sagrado e passaram a saciar somente os prazeres de quem as assistia. Não se sabia quem sairia vencedor, o importante era haver bastante sangue pelo chão. As cerimônias nunca deixaram de ser cumpridas, mas já não eram mais compreendidas. Por que o povo preferia assistir lutas?

Não tenho claras as respostas, mas observo que a televisão aberta aproveita esta linha de conduta para mostrar em seus telejornais seqüências de acidentes, enchentes, incêndios, assassinatos.

Tragédias dão muita audiência. Seqüestros têm o poder de atrair câmeras e mantê-las ligadas até o seu final, prendendo ao mesmo tempo vítimas e telespectadores. Qual o fascínio em presenciar dores, espancamentos, lágrimas e sangue? Comparar as dores e ver que os outros estão em pior situação? Alimentar uma agressividade contida?

Emoções contaminam. O sorriso de um bebê enche a casa de alegria, o choro deste mesmo bebê desencadeia uma choradeira coletiva no berçário. O bocejo de um entediado logo fará o outro bocejar. Gritos de raiva podem irritar os interlocutores. A felicidade do menino da esquina logo se estampou em meu rosto. A desgraça e o sofrimento dos outros deveriam contaminar os que a acompanham, mas não é isto que está acontecendo.

Ao invés do sofrimento das vitimas servir como espelho e refletir no espectador, criou-se um abismo entre os dois. A dor do outro não sensibiliza mais; serve apenas de alimento para o egoísmo emocional. A solidariedade demonstrada é apenas com doações materiais. Existem exceções, mas a semelhança de Roma onde o caráter religioso das lutas foi aos poucos sendo esquecido, a dor das vítimas parece também estar sendo ignorada em prol da audiência cada vez maior de tragédias.

Com a televisão, o circo romano voltou mais forte. Agora entra direto nas casas do povo, e a atração principal permanece sendo o sangue. Se o desgraça alheia transmite sofrimento, por que as pessoas não trocam de canal? Por que ficam olhando?

A verdadeira tragédia é o descaso com o sofrimento alheio. Mais de dois mil anos se passaram e a crueldade humana ao invés de ser educada e tratada, continua a ser alimentada. Partindo do pressuposto que o povo goste de assistir desgraças, como noticiar insensivelmente a amputação dos braços de um bebê em Serra Leoa, realizada por mercenários em punição ao pai que se recusou a entregar algumas pepitas de ouro e, em seguida, desejar boa noite aos ouvintes?

A resposta é simples. Mostrar futebol e alguns gols logo após as desgraças, misturando emoções na cabeça do povo. A consciência fica mais tranqüila, a dor é sublimada e quem sabe pode se ter até uma boa noite de sono. Algo vai mal. De um lado e de outro da telinha.
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segunda-feira, 4 de maio de 2009

A TROCA DO INSUBSTITUÍVEL




Durante vinte e cinco anos André trabalhou na mesma empresa. Começou como faxineiro e foi sendo promovido até alcançar o cargo de gerente executivo. Dedicou corpo e alma ao trabalho, conhecia com detalhes todos os setores. A empresa era seu lar. Um belo dia, ao entrar em sua sala, recebe a noticia de que foi demitido. Substituido por um funcionário mais jovem, mais graduado e menos oneroso para a empresa. Esta não é uma história rara, pelo contrário, está cada dia mais frequente.

André ficou muito magoado e porque não dizer, decepcionado. Gostaria de ser considerado uma pessoa especial e não ser trocado por um “alguém” qualquer. Com que direito André pode ficar contrariado e se achar insubstituível? Afinal de contas, pessoas são ou não são insubstituíveis?

Acredito que cada ser humano trabalhe e conviva com suas características únicas e especiais, e na impossibilidade ou ausência do mesmo, uma reposição possa ser feita para que outro ocupe o seu lugar. Não se trata de substituição, mas de ocupar o lugar deixado vago. Todos somos insubstituíveis. Quem sabe o outro possa trabalhar e se relacionar de uma maneira diferente e até mesmo mais eficiente, mas não será uma substituição. Peças podem ser substituidas por outras iguais, seres humanos por serem tão diferentes entre si, por envolverem sentimentos, podem ser trocados, jamais substituidos. Deixarão saudades ou não, mas sua troca não será uma simples reposição.

Tudo isto pode ser apenas um jogo de palavras, mas a verdade é que no íntimo sonhamos com a possibilidade de sermos únicos, especiais e insubstituíveis. Antoine de Saint Exupéry em sua fábula “O Pequeno Príncipe” fala da idéia de formar laços, cativar. Dizia a raposa : Tu não és para mim senão um garoto inteligente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidades de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...

Não importa quem será o substituto, a dor é por saber que não somos imprescindíveis. Que por mais e melhor que possamos ser ou fazer, um dia sairemos do palco, e o show vai continuar. O incômodo pela troca nada mais é do que uma demonstração de amor. Amor próprio e amor pelo palco que um dia vamos ter que deixar, seja porque nos mandaram sair ou porque um dia vamos morrer. No caso de André, amor pela empresa também.


A empresa faltou com fidelidade ao demitir o funcionário André? Fidelidade é a capacidade de conservar, manter ou preservar as características originais, ou seja, manter as referências. Exemplos: fidelidade conjugal consiste na manutenção dos votos realizados por ocasião da união, fidelidade partidária envolve adesão a ideais politicos, traduções fidedignas mantem exatamente o texto original...Fornecedor e cliente também podem manter relações de fidelidade. O que seria fidelidade empresarial?

Vivemos em constante mudança. A mudança não só é necessária à vida; ela é a própria vida. É difícil manter um equilibrio entre ser fiel e conservar referências originais de um lado e acompanhar as mudanças essenciais à vida e ao mercado de trabalho de outro. Mudanças não acontecem com a mesma velocidade para todos. Como ser fiel e mudar ao mesmo tempo?

O equilibrio da vida é dinâmico. O grande desafio é mudar e ainda assim ser fiel. Uma banda de rockeiros cabeludos dos anos 80 pode continuar tocando o mesmo estilo musical e decidir raspar a cabeça. Os cabelos mudaram, mas a voz e a musica permanecem as mesmas. Desde que as referências originais sejam claras e haja acordo na mudança, a fidelidade estará mantida.

Talvez a dificuldade esteja nas entrelinhas, no que nunca foi questionado, naquilo que não foi conversado, mas que se acredita esteja muito bem esclarecido. Quando eventualmente as expectativas não se realizam, aparecem mágoas, acusações, decepções. Papéis e expectativas precisam estar muito claros para todos. Talvez as mudanças tenham acontecido na empresa e André não tenha acompanhado. Em outros casos são os funcionários que mudam e a empresa permanece estagnada. Mudança não significa infidelidade. A infidelidade acontece quando só um lado muda. Se ambos mudarem juntos, a fidelidade se preserva e em muitos casos, ser fiel é mudar.

Houve falha? Quem falhou? A empresa ou André?
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