Pense numa traição. Não qualquer uma, mas aquela. A que deixou
cicatriz, A que veio de quem estava perto, dividia a mesa, os sonhos
e até o silêncio. De quem você menos esperava. Porque, sejamos
francos, inimigos não traem, apenas confirmam o que já
esperávamos deles. Quem nos apunhala pelas costas geralmente é
uma mão conhecida.
Você seria capaz de realmente perdoar? Não falo do perdão
superficial, automático e banal que se usa como etiqueta social para
encerrar uma discussão e salvar as aparências. Estou falando do
perdão profundo, quase sobre-humano, que exige rasgar o próprio
orgulho e encarar de frente o traidor e a ferida aberta.
Perdoar não é uma tarefa fácil, porque o perdão, quando verdadeiro,
não é linear e pode ser pensado em três níveis.
Primeiro: a pessoa confessa que errou, pede desculpas, demonstra
arrependimento, promete mudar. Aqui, o perdão parece possível, há
confissão, humildade e desejo de reparação. A mágoa ainda existe,
mas nasce uma esperança de cura.
Segundo: além de confessar, o ofensor implora por anistia, pede que
não se aplique a justiça da mágoa, que ele seja absolvido e libertado
da condenação. Aqui, o perdão exige mais generosidade, trata-se de
suspender a vingança e engolir o orgulho.
Terceiro: o mais difícil. O traidor não apenas pede anistia, mas deseja
apagar o passado, como se o erro nunca tivesse existido. Esse é o
limite humano do perdão, porque não se trata apenas de absolver ou
esquecer, mas de reconstruir a inocência perdida, de devolver ao
outro algo que ele mesmo destruiu.
O dilema é este: até onde a gente aguenta ir? Conseguimos
realmente confiar de novo, acreditando que a traição não vai se
repetir? Nós, humanos, limitados como somos, não temos como ler o
coração alheio. Só Deus, talvez, tenha essa visão de raio X que
atravessa intenções e perceba a verdade por trás do arrependimento.
Por isso, a sabedoria popular nos diz que errar é humano, mas
perdoar é divino. Deus consegue suportar inúmeras traições. Nós,
humanos, mal suportamos a primeira.
E talvez seja nesse abismo entre a mágoa e a graça que se revela a
verdadeira grandeza de uma alma. Porque o perdão genuíno não é
um ato de esquecimento, mas um ato de coragem. Se a traição nos
marcou, o perdão pode nos definir. Perdoar é subverter a lógica da
violência e plantar amor no terreno devastado.
Mas isso não é para todos. É para almas raras, que entendem que
perdoar, no fim das contas, é o último e mais sofisticado ato de
amor-próprio.
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