Gilberto e eu éramos colegas de escola, depois ficamos amigos.
Não amigos no sentido genérico da palavra, amigos de verdade, ou como se dizia
na época, amigos por toda a vida. Convivíamos dia e noite. Durante os estudos para
o vestibular, mensalmente cada um confeccionava uma prova simulada para o
outro, o objetivo era ver quem tiraria as melhores notas. Empatávamos, sempre nota dez para ambos. Eu
queria Medicina e ele Engenharia.
O pai de Gilberto era militar e precisou mudar com a família
para o Rio de Janeiro. A amizade não foi abalada. Continuamos elaborando provas
de treinamento e enviando pelo correio. Não existia internet, celular, TV a
cabo. Programas de televisão passavam primeiro no Rio de Janeiro e meses depois
chegavam ao Rio Grande do Sul. Gilberto escrevia cartas contando como as
novelas terminavam, e eu usava estas informações de acordo com a conveniência.
Fomos aprovados muito bem no vestibular e seguimos nossas
vidas, carreiras e correspondências. Gilberto fez concurso para um órgão governamental
e rapidamente progrediu na função. Eventualmente precisava trabalhar em Porto
Alegre e matávamos a saudade relembrando velhas histórias e atualizando novas
aventuras. Recentemente nos encontramos, e ele contou que estava aposentado,
pois havia se estressado demais no trabalho.
Percebi que estava diferente, mas não parecia abatido e sim
soberbo, esnobe, arrogante. Contou que enquanto se reportava ao presidente
Lula, ainda era fácil de trabalhar, mas quando a presidente Dilma assumiu o
cargo, ficou insustentável. Não havia diálogo, sequer coerência. Eram ordens,
cobranças e desordens. No entanto, o que mais me chamou a atenção no encontro
foi o traje de griffe que vestia, o relógio rolex no pulso, o espumante caro
que mandou servir e o hotel de luxo onde se hospedou. Não era o Gilberto que eu
conhecia, algo havia mudado.
A curiosidade, característica que me acompanha desde o tempo
das novelas, não sossegou enquanto não lhe fiz a pergunta que não queria calar.
Contei que também era médico concursado do governo federal, e recebia a quantia
de cinco mil e quatrocentos reais de aposentadoria. Queria saber se o valor que ele embolsava era
semelhante ao meu, visto que ambos éramos funcionários aposentados da União
pelo mesmo regime. Gilberto se acomodou na cadeira como se fosse um trono e do
alto de sua empáfia comentou que não iria responder para não me humilhar, pois
era muito, mas muito maior o seu provento.
Continuamos nossas vidas e conversas. Agora com mais tempo
livre, visto que éramos dois aposentados. O que um aposentado faz pela manhã?
Acorda, espreguiça, toma um café com calma e começa a ler o jornal. Aquele dia
foi diferente, a rotina foi quebrada. Ao apanhar o jornal na soleira da porta,
estampada na capa, a foto de meia página de Gilberto sendo escoltado pela
Policia Federal, preso na operação Lava Jato. Havia desviado mais de 120
milhões de reais para sua conta pessoal.
Pasmo, surpreso, boquiaberto, não conseguia acreditar no que
estava lendo. Como pôde meu amigo ter feito aquilo? Isto era coisa de políticos
corruptos, de pilantras de colarinho branco, não de meu amigo Gilberto. Ele
jamais faria algo parecido. Café com calma nem pensar, perdera a fome, a
esperança, o alento. Inocentemente, imaginei que houvesse sido induzido por
algum superior a realizar a transação ou alguém havia colocado seu nome
como “laranja” no processo. O fato é que
as provas eram contundentes.
Gilberto estava na penitenciária e eu, preso por um drama de
consciência. Como cidadão, tinha de reprová-lo, mas como amigo, não podia
deixar de estender-lhe a mão. Depois de muito pensar se deveria ou não, remeti
uma carta (nosso primitivo método de comunicação) à Policia Federal, endereçada
a ele, perguntando se poderia visitá-lo em sua nova morada. Prontamente veio a
resposta.
“Meu querido amigo de sempre, que bom ter noticias suas e
saber que não me abandonou. Tenho vergonha da situação em que me encontro, mas
seria uma satisfação enorme poder lhe rever. As regras de visitas aqui são
muito rígidas e as acomodações não são das melhores, mas me faria muito bem
trocarmos um afetuoso abraço. Seu amigo dos bons e maus tempos. Gilberto”.
Devo confessar que a velha e implacável curiosidade também
impulsionava bastante a viagem à Curitiba. Lá chegando, encontrei um Gilberto
debilitado, emagrecido e até um pouco anêmico. Vestia calça jeans e camiseta,
barba bem feita, cabeça raspada. Pareceu-me um tanto deprimido, talvez minha
presença o estivesse constrangendo.
Abraçou-me, mas não conseguia me olhar nos olhos. Começamos a
conversa timidamente, como se estivesse se desculpando pelo ambiente onde me
recebia. Contou que dividia uma cela de 12 metros quadrados com outro preso.
Uma cama pequena para cada um, varal de roupas e uma televisão de canal aberto
trazida pela família. No inicio o banho
era uma ducha de água fria, mas agora, colocaram chuveiro elétrico. As
refeições consistem de uma marmita com arroz, feijão, salada e carne, e no café
da manhã e lanche, são servidos café com leite e pão doce.
Para cada três dias trabalhados dentro da prisão, a lei prevê
um dia de remissão de pena. Gilberto
trabalha de entregador de marmitas, função de prestígio dentro de qualquer
penitenciária, e se orgulha de conhecer pelo nome quase todos os detentos de
sua galeria. Já diminuiu um ano de reclusão e em breve espera passar para o
regime semiaberto. Mostrou-me também uma tatuagem no braço esquerdo, inspirada
no filósofo Rousseau e estimulada por um líder religioso que lhe visita
regularmente. Foi desenhada lá mesmo no cárcere e agora é o seu mantra – O
dinheiro que temos é o instrumento da liberdade; aquele que corremos atrás é o
da servidão.
Tem direito a uma hora de banho de sol por dia e realiza
exercícios físicos com halteres
improvisados com um cabo de vassoura, barbante e garrafas pet. Visitas são
permitidas nas quartas feiras à tarde com duração de uma hora. Como está
divorciado, não recebe visitas íntimas.
A conversa evoluía e matava minha curiosidade sobre a vida
carcerária, mas não era isto que eu queria saber. Precisava tirar um peso de
minha consciência, descobrir se realmente meu amigo por toda a vida havia
cometido o maldito delito. Supunha que pudéssemos voltar aos velhos tempos em
que não tínhamos segredos entre nós e ele me confessasse o crime ou, pelo
menos, contasse o que realmente aconteceu. Não houve clima para este tipo de
conversa, seu olhar cabisbaixo parecia querer esconder algo, ou talvez dizer
alguma coisa que não consegui decifrar.
Não sei se a prisão, o crime, a vergonha, a depressão ou algo
maior criaram uma barreira entre nós. Sentia Gilberto como um desconhecido, seu
discurso era desprovido de sentimento, voz trêmula e encolhida, parecia conformado
com a situação, apenas esperando o tempo passar para ser solto. Seu olhar não
tinha brilho, nem mesmo esperança.
A visita durou exatamente uma hora. Uma sirene barulhenta
tocou avisando que deveríamos encerrar. Antes de partir, Gilberto perguntou como
estava minha vida. Segurei sua mão, como se estivesse lhe entregando um
presente e disse que não iria responder para não afrontá-lo, mas que estava
muito, mas muito melhor que a dele e lhe enviaria um livro de presente.
Despedimos-nos com um abraço protocolar. Voltei para casa
triste com a visita, porque o “encontro”
não aconteceu. Nem interessa mais saber o que Gilberto aprontou. Aquela cumplicidade quase sanguínea que só
amigos de toda uma vida possuem ficou para trás. Não houve como resgatar esta fraternidade, o
contexto do crime nos dividiu. Uma pena para ambos. Para ele prisão, para mim
desencontro. Para ele apatia, para mim decepção, para a justiça condenação. Perdemos
todos.
A vida e seus desencontros. Parabéns Dr. Ildo um texto denso e atualizado! Beijo grande.
ResponderExcluirInteressante! Nunca conheci alguém envolvido na lava-jato. Aliás não sei nem porque o nome é Lava-jato. Ana aquela que ama
ResponderExcluirMuito Bom! Gostei Liane
ResponderExcluirSr Ildo sempre atualizado. Grato. Luis
ResponderExcluirFico a pensar... Se a mudança de base categorial poderia ter feito tamanha mudança de valores, o que teria levado o Amigo a proceder e se comportar de forma tão arrogante? Penso que algumas pessoas se afastam de si mesmos quando lhe é oportunizando outros horizontes. Dinheiro algum paga a paz de espírito e a dignidade de um homem de princípios.
ResponderExcluirAs amizades mudam, as pessoas mudam, o dinheiro muda quem tem o caráter fraco. Infelizmente muitos se corrompem. E por pouco. Texto para refletir. Bruno
ResponderExcluirAlém de tudo, os presídios ao invés de regenerarem o indivíduo, transformam-no em um sociopata.
ResponderExcluirBem na real é triste encontrar um amigo assim, de nada adianta dinheiro sem liberdade...provavelmente até a família o deixou. O poder fascina! E corrompe! Celso
ResponderExcluire aprisiona... Jair
ExcluirSe quer conhecer alguém dê: PODER E/OU DINHEIRO.
ResponderExcluirSe transformam... em MONSTROS.
Bom dia Ildo. Sou a Adri (Adriana), ex mulher do Gilberto. Concordo com voce, ele mudou, e muito. Aos poucos foi ficando uma pessoa fria e calculista, quase sempre calado em casa. Vivia em reuniões, viagens e festas. Começou a comprar presentes caros pra me agradar e justificar seu afastamento. Assim como você, tentei me aproximar dele enquanto casados, mas ele já estava em outra (ou com outra, não sei). Nos separamos antes da prisão e não tive coragem nem vontade de visita-lo. Fico feliz e aliviada de saber que não fui a única a perceber uma mudança naquele jovem alegre, romântico, esperto, amante e amigo que conhecemos e nos aproximamos. Realmente o poder e o dinheiro podem acabar com uma pessoa e seus relacionamentos. Grande abraço. Quando aparecer pelo Rio de Janeiro, nos procure.
ResponderExcluirA triste vida real. MM
ExcluirA fantasia e a realidade misturam-se
ExcluirBom dia Quase não acredito no que leio, como pode um amigo mudar tanto, infelizmente já perdi amigos para as drogas, para o álcool, desgraça igual a uma prisão. Carlos
ResponderExcluirEstes bandidos não deveriam ter um dia de remissão de pena por cada três dias trabalhados. Deveriam ser soltos somente quando devolvessem tudo que comprovadamente roubaram. São condenados a 12 anos de prisão, cumprem quatro, vão para regime semi aberto com tornozeleiras e ficam por aí dando conferências e ensinando a pilantragem. Tudo errado.
ResponderExcluirLEGIÃO URBANA
ResponderExcluirNas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam um país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro
Porque a vida é deste modo, é feita de encontros e desencontros, e a gente segue à deriva, num barco à vela, içada pelo vento, ora tempestade, ora calmaria, entre erros e acertos, vivendo e aprendendo a viver. Angela
ResponderExcluirAté que o barco encontro seu porto seguro!
ExcluirDr. Ildo, talvez o senhor tenha ido visitar seu amigo com vários pré julgamentos e já o tivesse condenado inconscientemente, por isso o encontro não aconteceu. Uma hipótese.
ResponderExcluirÉ no desencontro dos pés que surge o passo.
ResponderExcluirQue lindo!
ExcluirPara cada desencontro da vida existe a possibilidade de um encontro consigo mesmo. Para cada encontro, existe o risco de um desencontro. Sao ciclos existenciais. Você põe seu filho no carrossel do parque, a cada volta acontece um encontro e depois um desencontro, e pai e filho sorriem e se divertem. Se existir a esperança ou a certeza de um encontro, o desencontro fica mais leve. Pode até ser saudável. Pedro M. L.
ResponderExcluirDois desencontros podem levar a um encontro.
ExcluirA ESTAÇÃO É A MESMA MAS VOCÊ PODE MUDAR DE TREM. DEPENDE DO CARÁTER DE CADA UM. ARNO
ResponderExcluirToda perda é um achado. Se houve o desencontro é porque algo foi encontrado. Bruna
ResponderExcluir