segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Desencontro


Gilberto e eu éramos colegas de escola, depois ficamos amigos. Não amigos no sentido genérico da palavra, amigos de verdade, ou como se dizia na época, amigos por toda a vida. Convivíamos dia e noite. Durante os estudos para o vestibular, mensalmente cada um confeccionava uma prova simulada para o outro, o objetivo era ver quem tiraria as melhores notas.  Empatávamos, sempre nota dez para ambos. Eu queria Medicina e ele Engenharia.

O pai de Gilberto era militar e precisou mudar com a família para o Rio de Janeiro. A amizade não foi abalada. Continuamos elaborando provas de treinamento e enviando pelo correio. Não existia internet, celular, TV a cabo. Programas de televisão passavam primeiro no Rio de Janeiro e meses depois chegavam ao Rio Grande do Sul. Gilberto escrevia cartas contando como as novelas terminavam, e eu usava estas informações  de acordo com a conveniência.

Fomos aprovados muito bem no vestibular e seguimos nossas vidas, carreiras e correspondências. Gilberto fez concurso para um órgão governamental e rapidamente progrediu na função. Eventualmente precisava trabalhar em Porto Alegre e matávamos a saudade relembrando velhas histórias e atualizando novas aventuras. Recentemente nos encontramos, e ele contou que estava aposentado, pois havia se estressado demais no trabalho.


Percebi que estava diferente, mas não parecia abatido e sim soberbo, esnobe, arrogante. Contou que enquanto se reportava ao presidente Lula, ainda era fácil de trabalhar, mas quando a presidente Dilma assumiu o cargo, ficou insustentável. Não havia diálogo, sequer coerência. Eram ordens, cobranças e desordens. No entanto, o que mais me chamou a atenção no encontro foi o traje de griffe que vestia, o relógio rolex no pulso, o espumante caro que mandou servir e o hotel de luxo onde se hospedou. Não era o Gilberto que eu conhecia, algo havia mudado.

A curiosidade, característica que me acompanha desde o tempo das novelas, não sossegou enquanto não lhe fiz a pergunta que não queria calar. Contei que também era médico concursado do governo federal, e recebia a quantia de cinco mil e quatrocentos reais de aposentadoria.  Queria saber se o valor que ele embolsava era semelhante ao meu, visto que ambos éramos funcionários aposentados da União pelo mesmo regime. Gilberto se acomodou na cadeira como se fosse um trono e do alto de sua empáfia comentou que não iria responder para não me humilhar, pois era muito, mas muito maior o seu provento.

Continuamos nossas vidas e conversas. Agora com mais tempo livre, visto que éramos dois aposentados. O que um aposentado faz pela manhã? Acorda, espreguiça, toma um café com calma e começa a ler o jornal. Aquele dia foi diferente, a rotina foi quebrada. Ao apanhar o jornal na soleira da porta, estampada na capa, a foto de meia página de Gilberto sendo escoltado pela Policia Federal, preso na operação Lava Jato. Havia desviado mais de 120 milhões de reais para sua conta pessoal.

Pasmo, surpreso, boquiaberto, não conseguia acreditar no que estava lendo. Como pôde meu amigo ter feito aquilo? Isto era coisa de políticos corruptos, de pilantras de colarinho branco, não de meu amigo Gilberto. Ele jamais faria algo parecido. Café com calma nem pensar, perdera a fome, a esperança, o alento. Inocentemente, imaginei que houvesse sido induzido por algum superior a realizar a transação ou alguém havia colocado seu nome como  “laranja” no processo. O fato é que as provas eram contundentes.

Gilberto estava na penitenciária e eu, preso por um drama de consciência. Como cidadão, tinha de reprová-lo, mas como amigo, não podia deixar de estender-lhe a mão. Depois de muito pensar se deveria ou não, remeti uma carta (nosso primitivo método de comunicação) à Policia Federal, endereçada a ele, perguntando se poderia visitá-lo em sua nova morada. Prontamente veio a resposta.

“Meu querido amigo de sempre, que bom ter noticias suas e saber que não me abandonou. Tenho vergonha da situação em que me encontro, mas seria uma satisfação enorme poder lhe rever. As regras de visitas aqui são muito rígidas e as acomodações não são das melhores, mas me faria muito bem trocarmos um afetuoso abraço. Seu amigo dos bons e maus tempos. Gilberto”.

Devo confessar que a velha e implacável curiosidade também impulsionava bastante a viagem à Curitiba. Lá chegando, encontrei um Gilberto debilitado, emagrecido e até um pouco anêmico. Vestia calça jeans e camiseta, barba bem feita, cabeça raspada. Pareceu-me um tanto deprimido, talvez minha presença o estivesse constrangendo.

Abraçou-me, mas não conseguia me olhar nos olhos. Começamos a conversa timidamente, como se estivesse se desculpando pelo ambiente onde me recebia. Contou que dividia uma cela de 12 metros quadrados com outro preso. Uma cama pequena para cada um, varal de roupas e uma televisão de canal aberto trazida pela família.  No inicio o banho era uma ducha de água fria, mas agora, colocaram chuveiro elétrico. As refeições consistem de uma marmita com arroz, feijão, salada e carne, e no café da manhã e lanche, são servidos café com leite e pão doce.

Para cada três dias trabalhados dentro da prisão, a lei prevê um dia de remissão de pena.  Gilberto trabalha de entregador de marmitas, função de prestígio dentro de qualquer penitenciária, e se orgulha de conhecer pelo nome quase todos os detentos de sua galeria. Já diminuiu um ano de reclusão e em breve espera passar para o regime semiaberto. Mostrou-me também uma tatuagem no braço esquerdo, inspirada no filósofo Rousseau e estimulada por um líder religioso que lhe visita regularmente. Foi desenhada lá mesmo no cárcere e agora é o seu mantra – O dinheiro que temos é o instrumento da liberdade; aquele que corremos atrás é o da servidão.

Tem direito a uma hora de banho de sol por dia e realiza exercícios físicos com  halteres improvisados com um cabo de vassoura, barbante e garrafas pet. Visitas são permitidas nas quartas feiras à tarde com duração de uma hora. Como está divorciado, não recebe visitas íntimas.

A conversa evoluía e matava minha curiosidade sobre a vida carcerária, mas não era isto que eu queria saber. Precisava tirar um peso de minha consciência, descobrir se realmente meu amigo por toda a vida havia cometido o maldito delito. Supunha que pudéssemos voltar aos velhos tempos em que não tínhamos segredos entre nós e ele me confessasse o crime ou, pelo menos, contasse o que realmente aconteceu. Não houve clima para este tipo de conversa, seu olhar cabisbaixo parecia querer esconder algo, ou talvez dizer alguma coisa que não consegui decifrar.

Não sei se a prisão, o crime, a vergonha, a depressão ou algo maior criaram uma barreira entre nós. Sentia Gilberto como um desconhecido, seu discurso era desprovido de sentimento, voz trêmula e encolhida, parecia conformado com a situação, apenas esperando o tempo passar para ser solto. Seu olhar não tinha brilho, nem mesmo esperança.

A visita durou exatamente uma hora. Uma sirene barulhenta tocou avisando que deveríamos encerrar. Antes de partir, Gilberto perguntou como estava minha vida. Segurei sua mão, como se estivesse lhe entregando um presente e disse que não iria responder para não afrontá-lo, mas que estava muito, mas muito melhor que a dele e lhe enviaria um livro de presente.

Despedimos-nos com um abraço protocolar. Voltei para casa triste com a visita, porque  o “encontro” não aconteceu. Nem interessa mais saber o que Gilberto aprontou.  Aquela cumplicidade quase sanguínea que só amigos de toda uma vida possuem ficou para trás.  Não houve como resgatar esta fraternidade, o contexto do crime nos dividiu. Uma pena para ambos. Para ele prisão, para mim desencontro. Para ele apatia, para mim decepção, para a justiça condenação. Perdemos todos.





25 comentários:

  1. A vida e seus desencontros. Parabéns Dr. Ildo um texto denso e atualizado! Beijo grande.

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  2. Interessante! Nunca conheci alguém envolvido na lava-jato. Aliás não sei nem porque o nome é Lava-jato. Ana aquela que ama

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  3. Muito Bom! Gostei Liane

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  4. Sr Ildo sempre atualizado. Grato. Luis

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  5. Fico a pensar... Se a mudança de base categorial poderia ter feito tamanha mudança de valores, o que teria levado o Amigo a proceder e se comportar de forma tão arrogante? Penso que algumas pessoas se afastam de si mesmos quando lhe é oportunizando outros horizontes. Dinheiro algum paga a paz de espírito e a dignidade de um homem de princípios.

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  6. As amizades mudam, as pessoas mudam, o dinheiro muda quem tem o caráter fraco. Infelizmente muitos se corrompem. E por pouco. Texto para refletir. Bruno

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  7. Além de tudo, os presídios ao invés de regenerarem o indivíduo, transformam-no em um sociopata.

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  8. Bem na real é triste encontrar um amigo assim, de nada adianta dinheiro sem liberdade...provavelmente até a família o deixou. O poder fascina! E corrompe! Celso

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  9. Se quer conhecer alguém dê: PODER E/OU DINHEIRO.
    Se transformam... em MONSTROS.

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  10. Bom dia Ildo. Sou a Adri (Adriana), ex mulher do Gilberto. Concordo com voce, ele mudou, e muito. Aos poucos foi ficando uma pessoa fria e calculista, quase sempre calado em casa. Vivia em reuniões, viagens e festas. Começou a comprar presentes caros pra me agradar e justificar seu afastamento. Assim como você, tentei me aproximar dele enquanto casados, mas ele já estava em outra (ou com outra, não sei). Nos separamos antes da prisão e não tive coragem nem vontade de visita-lo. Fico feliz e aliviada de saber que não fui a única a perceber uma mudança naquele jovem alegre, romântico, esperto, amante e amigo que conhecemos e nos aproximamos. Realmente o poder e o dinheiro podem acabar com uma pessoa e seus relacionamentos. Grande abraço. Quando aparecer pelo Rio de Janeiro, nos procure.

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  11. Bom dia Quase não acredito no que leio, como pode um amigo mudar tanto, infelizmente já perdi amigos para as drogas, para o álcool, desgraça igual a uma prisão. Carlos

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  12. Estes bandidos não deveriam ter um dia de remissão de pena por cada três dias trabalhados. Deveriam ser soltos somente quando devolvessem tudo que comprovadamente roubaram. São condenados a 12 anos de prisão, cumprem quatro, vão para regime semi aberto com tornozeleiras e ficam por aí dando conferências e ensinando a pilantragem. Tudo errado.

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  13. LEGIÃO URBANA

    Nas noites de frio é melhor nem nascer
    Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer
    E assim nos tornamos brasileiros
    Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
    Transformam um país inteiro num puteiro
    Pois assim se ganha mais dinheiro

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  14. Porque a vida é deste modo, é feita de encontros e desencontros, e a gente segue à deriva, num barco à vela, içada pelo vento, ora tempestade, ora calmaria, entre erros e acertos, vivendo e aprendendo a viver. Angela

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    1. Até que o barco encontro seu porto seguro!

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  15. Dr. Ildo, talvez o senhor tenha ido visitar seu amigo com vários pré julgamentos e já o tivesse condenado inconscientemente, por isso o encontro não aconteceu. Uma hipótese.

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  16. É no desencontro dos pés que surge o passo.

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  17. Para cada desencontro da vida existe a possibilidade de um encontro consigo mesmo. Para cada encontro, existe o risco de um desencontro. Sao ciclos existenciais. Você põe seu filho no carrossel do parque, a cada volta acontece um encontro e depois um desencontro, e pai e filho sorriem e se divertem. Se existir a esperança ou a certeza de um encontro, o desencontro fica mais leve. Pode até ser saudável. Pedro M. L.

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    1. Dois desencontros podem levar a um encontro.

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  18. A ESTAÇÃO É A MESMA MAS VOCÊ PODE MUDAR DE TREM. DEPENDE DO CARÁTER DE CADA UM. ARNO

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  19. Toda perda é um achado. Se houve o desencontro é porque algo foi encontrado. Bruna

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