Era um churrasco entre
amigos, parceiros há mais de dez anos. Não havia estranhos, um jantar informal
de confraternização. Enquanto a carne assava, bebíamos, conversávamos,
contávamos piadas, recordávamos aventuras e desventuras vividas conjuntamente
ao longo da vida. Lá pelas tantas, fiz uma brincadeira inocente com a filha de
um amigo. Disse a ela que talvez ficasse solteira por toda a vida, pois ninguém
aguentaria um sogro como seu pai.
Na hora não percebi, mas
meu amigo ficou muito chateado. No outro dia, comentou com a esposa que eu
havia sido infeliz na brincadeira e não levaria adiante nossa amizade, pois era
inadmissível alguém zombar de sua filha e ridicularizá-lo.
Logo que soube,
apressei-me em fazer contato e pedir desculpas. Expliquei que talvez tivesse me
excedido um pouco no deboche, mas se o fiz, foi por considerá-lo um grande amigo
que não se importaria com o gracejo. Jamais imaginaria que aquilo poderia
aborrecê-lo tanto e perturbar nossa amizade.
Ele escutou
silenciosamente e apenas respondeu que estava tudo bem. O fato é que não ficou
tudo bem. Passou a não mais me cumprimentar e, nas reuniões seguintes, se eu
estivesse presente, afastava-se. Mais uma vez, voltei a procurá-lo, comentando
que seu comportamento havia mudado em relação a nossa amizade e, se o motivo
ainda era aquela infeliz brincadeira, sinceramente pedia desculpas. Tratou-me
com indiferença, mostrando que qualquer tentativa de conciliação ou harmonia
seria inútil.
Inconformado, ainda fiz
um último esforço. Apelei para que sua esposa interferisse a meu favor. Outra
frustração, ele estava irredutível. Dez anos se passaram e, por ironia do
destino, fomos colocados frente a frente. Ele caminhava em uma direção e eu em
sentido contrário. Só os dois naquele pequeno espaço de terra. Ao reconhecê-lo
fui a seu encontro com um sorriso franco e braços estendidos para um
cumprimento afetuoso, mas ele desviou o passo, virou as costas e se esquivou.
Tanta coisa aconteceu
depois daquela molecagem do passado: a filha casou, nasceram dois lindos bebês,
ele se aposentou, sua mãe faleceu, a esposa se acidentou, o outro filho foi
morar no exterior, já trocaram duas vezes de carro, mudaram-se para um
apartamento de cobertura. Mas ele não quer ou não consegue me perdoar.
Um mês antes do
casamento, Bruno terminou o noivado por email. Não deu maiores explicações,
rompeu, desligou o telefone e sumiu. Enxoval comprado, festa marcada, convites
na rua. Sandra, a noiva, ficou sem chão. Um mês depois, ele posta uma foto no
facebook apaixonado por uma colega de trabalho. Sandra ficou perplexa com o
desrespeito. Além de perder o chão, agora perdeu também a cabeça e a consideração
por Bruno, desejou matá-lo e com a mesma faca, cortar o pescoço da outra. Dez
anos se passaram, Sandra esta casada e feliz, Bruno casou e descasou algumas
vezes. Toda vez que se encontram, ambos desviam o olhar e fingem que não se conhecem.
Não se perdoaram.
Não entendo quase nada
de leis, mas parece-me que depois de passado certo tempo de um homicídio (entre
8 e 20 anos), se a Justiça não julgar e condenar o assassino, o crime prescreve
e não há mais punição. A sociedade admite que depois de um tempo mais ou menos
longo, seja possível suspender o castigo e perdoar o malfeitor. Mas isto é a
letra dura da lei quem diz, será que nosso coração funciona e sente dessa
maneira?
Os livros ensinam que
perdoar vem do latim perdonare, junção de “per” com “donare”. O prefixo “per”
indicando movimento em direção de, e “donare” significando doação. Doar é mais
do que dar, é a entrega total. Assim, perdoar quer dizer doar ao outro a
possibilidade de também se doar. Perdoar seria doar amor e permitir que a
pessoa objeto do perdão também conseguisse devolver um amor que até então, só
negara. Perdoa-se na medida em que se ama.
Assim como a
Constituição, esta definição fica muito bonita no papel, mas por que meu ex
amigo, Sandra, Bruno, Maria, João e tantos outros não perdoam? Talvez até
tenham pensado em perdoar, engolir o orgulho, a raiva e a tristeza. Pensaram,
leram, ouviram conselhos, tentaram, mas não conseguiram. O coração não ficou em paz. Pobre coração,
ainda sente dor, ainda ama errado.
Às vezes a razão, a
espiritualidade, e até mesmo a religião perdoam, mas o coração ainda sangra. Outras
vezes, a hemorragia estanca, mas ainda dói. Quando nos machucamos porque
levamos um encontrão, no inicio a dor é aguda, muito forte, depois vai
aliviando lentamente até passar. No entanto, ainda assim, pode restar, bem lá
no fundo, um ponto nevrálgico, que se tocado, volta a doer. Perdão genuíno precisa
envolver analgesia total e permanente. Não dói a mente, nem o coração, tampouco
a alma.
Perdoar não significa
desculpar ou eliminar a culpa. Quem errou, falhou, pecou, continua com a
autoria do deslize. Desculpar também não muda o que aconteceu. Bruno vai
carregar para o resto da vida a responsabilidade por aquele email, assim como
eu lembro até hoje das consequências daquela brincadeira.
Perdoar também não é
esquecer, são coisas muito diferentes, no entanto, bastante gente confunde. Perdoar
não trata de tirar da memória um fato doloroso. Querendo ou não, recordações voltam a nossa mente, não possuímos amnésia seletiva. Diferente do que muitos imaginam, perdoa-se para manter viva a memória do mal praticado, e não para esquecê-lo. Sem o perdão, a memória seria dolorosa, e por vezes, insuportável.
Perdoar é o
reconhecimento de que houve uma falha e que existe a disposição para que não
ocorra novamente. Assim, perdoar significa lembrar o incidente, no entanto,
jamais cobrar da pessoa perdoada a divida.
O que se perdoa não é o
ato praticado, e sim a pessoa que o cometeu. Perdoar não é uma defesa do
pecado, tampouco evita que tudo aconteça novamente. Perdoar é a constatação da
humanidade do pecador, igualando-o comigo. Assim como ele falhou, também eu
poderia ter falhado. O fato de eu não cometer aquele erro em particular, apenas
torna o erro dele distinto dos meus. Não sou mais virtuoso ou melhor que
ninguém.
Muitos, ao invés de
perdoar, partem para a desforra e dão o troco. É mais fácil. Perdoar é um
processo lento, revidar é instintivo. Aparentemente condenação, castigo e
vingança acalmam os nervos. Antigamente pecadores eram enforcados, queimados ou
apedrejados em praças públicas. A multidão delirava com a punição e retornava
para casa silenciosa e satisfeita. A ordem estava restabelecida. O castigo
adormecia a consciência coletiva e ilusoriamente reparava a culpa do transgressor.
A consciência só adormecia,
não absolvia. O coração só sossegava, não perdoava. A dor, o ressentimento, a
raiva eram anestesiados, não prescritos. Logo aconteceria um despertar e uma
necessidade de procurar outro bode expiatório para ser sacrificado em nome da
grandeza e retidão dos repressores ofendidos.
Talvez os seres humanos
se vinguem mais que perdoem. Talvez esqueçam mais que perdoem. Talvez perdoem
mais por fraqueza que por virtude ou vontade. Talvez perdoar seja somente para
os deuses. Para nós, humanos, talvez só caiba errar, tentar consertar e, se
possível, não repetir o erro.
Errei na brincadeira com
o ex-amigo, tentei consertar, não consegui. Mesmo assim, perdoei-o por não me
perdoar. Entendo suas dificuldades, solidarizo-me com ele. Não sinto mais dor, mas
meus sentimentos não foram anestesiados. Sinto saudade daquela amizade que me
era tão cara. Sinto vontade de lhe dar um abraço apertado. Sinto leveza por ter
perdoado. Sinto muito. Perdoar é a melhor vingança.
Texto singular e muito significativo! Parabéns amigo!!
ResponderExcluirAdorei Dr Ildo! Desejo que o seu amigo leia o texto e lhe procure. Um abraço bem apertado! E o recomeço da amizade de vocês. beijo
ResponderExcluirIldo, existem várias formas de perdão. Como saber o motivo pelo o qual isso magoou tanto este amigo. Poderia o amigo ter se reconhecido em tua fala? Reconhecer a própria verdade nas falas de outrem, muitas vezes é doloroso. Para alguns o afastamento é a melhor maneira de perdoar, não lembrar daquilo que possivelmente o tenha magoado, e por vezes, esse amigo tenha feito longas reflexões do que lhe foi dito. Penso que o perdão, só pode ser dado, a quem quer ser perdoado. O arrependimento é algo que vem dos valores que cada um carrega em sua vivência em relação ao próximo. Quanto ao Bruno, o que falar... Não teve coragem, teve medo, não queria ver a pessoa chorando, muitas são as possibilidades de ter agido dessa forma. Como saber o que vai na alma humana, se ela mesma, não nos revelar. Adorei este texto.
ResponderExcluirPerdoar...conseguimos realmente de fato perdoar alguém quando lá no fundo da alma não restar nenhuma rusga do acontecido..quando os dois puderem se olhar nos olhos e rirem o sorriso puro ...talvez,para nos humanos que tanto pensamos e tiramos as conclusões dos fatos ocorridos com a vantagem própria sem entender o porquê do comportamento do outro seja realmente impossível...o que é uma pena...as pessoas seriam mais felizes se pudessem se abraçar e expressar o sentimento puro sem mágoas
ResponderExcluirDesculpar é para Deuses! Não perdoo e nem desculpo.
ResponderExcluirTamu junto!
ExcluirBacana o texto, acredito que vai de cada um e cada momento o perdão. Meu namorado mentia, traia, mentia, me enrolava mesmo, foi pssando o tempo e eu pressa num relacionamento doente. Me libertei e não perdoo, alias prefiro nem cruzar com ele e se cruzar viro a cara. Mel
Excluir“Perdoar não é esquecer”.
ResponderExcluirTudo bem que o cara não queria mais casar mas vai decidir 1 mês antes...ela esta mais do que certa em virar a cara! Quanto ao seu amigo acho que não era tão amigo, vai ver você colocou a amizade num pedestal mas estava mais para um banquinho ...
ResponderExcluirResolvi me amar não perdoo mais! Bato a porta na cara, atravesso a rua, bloqueio nas redes sociais, viro a cara. Não perco tempo com quem não me valoriza ou não quer ser meu amigo. Não mendigo Amor! Bruna
ResponderExcluirPuxa Sr Ildo quem tem um amigo assim tira de letra qualquer inimigo.
ResponderExcluirQuem já não passou por isto??? Hj nem dou bola!
ResponderExcluirE DURMA-SE COM UM BARULHO DESSES!
ResponderExcluirNem me venha com pedidos de perdão, não perdoo!
ResponderExcluirA melhor vingança é o desprezo! Não olho mais na cara! Enterro vivo! Bia
ResponderExcluirAcho que perdoar uma vez, ainda vale. Mas perdoar a segunda já é burrice. Vamos falhar um dia, precisamos pensar assim. Só um dia, só um perdão. Parabéns Ildo, cada vez melhor. Andressa
ResponderExcluirBem assim, ficar correndo atrás igual a uma trouxa, perdoando..perdoando..Burrice é pouca!
ExcluirVixxxi que amigo mais mala o seu! Foi ao encontro de braços abertos.. eu nocauteava ele! Se fosse meu ex amigo!
ResponderExcluirA difícil arte de perdoar!
ResponderExcluirAcho que se você precisa perdoar é porque foi magoado e se foi magoado melhor sair fora.
ResponderExcluirSr Ildo fantástico! Grato por partilhar seus conhecimentos. Marco
ResponderExcluirQuem perdoa muito...acaba se dando mal
ResponderExcluirNão acredito mais no perdão! As pessoas não são verdadeiras mentem, traem e enganam. Uma pena. Ana aquela que não ama!
ResponderExcluirTudo acontece no tempo certo, até o perdão.
ResponderExcluirConcordo o ser humano se vinga mais do que perdoa!
ResponderExcluirPerdoar é para Deuses...sou mais da vingança! Bem vingada ! Não gasto minhas energias perdoando. Desprezo, deleto,bloqueio...
ResponderExcluirUm amigo eu perdoo..um amor jamais !
ResponderExcluirComplicado..se vc perdoa parece que é fraco e babaca. Se não perdoa precisa saber lidar com a perda. Toni
ResponderExcluirSr Ildo curto seus textos. Parabéns Virgínia
ResponderExcluirTem gente que fala quem ama perdoa! Mas não é bem assim depende de tanta coisa. O importante é estar em paz consigo. Vanusa
ResponderExcluirPerdoa-se na medida em que se ama. Que perigo para aqueles que amam demais!
ResponderExcluirMe traiu com outra durante 2 anos. Quando descobri, pediu perdão e disse que ia acabar com tudo e deixá-la. Eu o amava loucamente. Dá pra perdoar? S.
ResponderExcluirSó se quiser ser traída de novo. A vida é feita de escolhas! Vai em busca de quem te valoriza! Vai te amar loucamente primeiro.
ExcluirPRECISAMOS TER CUIDADO COM O AMAR LOUCAMENTE ACABAMOS NOS MACHUCANDO.
ExcluirBom amiga só você pode avaliar se vale a pena. Eu daria mais uma chance até porque você ama loucamente. E não tem coisa melhor do que ser louca por alguém. Vai que ele toma jeito! Perdoa !
ExcluirCaro Ildo, este seu ex amigo é um babaca mesmo, ninguém ia querer ele como sogro. Vai ver a filha casou pra fugir da casa do pai. Ah, se ele ler isto não vai me perdoar também. Kkk. Anderson
ResponderExcluirBabaca mesmo nem merecia ser citado num artigo.
ExcluirLarga ele! Você merece mais! 2 anos Jesussss
ResponderExcluirTraição, infidelidade não se deve perdoar. É como uma tatuagem que se faz. Você pode até tentar retirar ou colocar algo pra diafarçar, mas sempre vai ficar aquela marquinha. E tem aquela máxima, traição se cura com traição. Acredite quem quiser.
ResponderExcluirNossa que perigo !!!
ExcluirNão concordo em pagar na mesma moeda. Muito baixo. Saiu do relacionamento com classe e sigo minha vida. Paula
ExcluirConcordo mas quando você ama loucamente nem pensa nesta possibilidade, nem olha para os lados rsrsrs
ResponderExcluirPerdoar é muito complexo quando você pensa que é a melhor vingança. O outro fica na tua mao! Não entende o que aconteceu. Duda
ResponderExcluirO fraco jamais perdoa: o perdão é uma das características do forte.
ResponderExcluirMahatma Gandhi
Como cobrar dos outros que me perdoem??? Fazendo uma meia culpa e estando com meu coração, minha alma tranquila... procurando cuidar para não magoar e não ficar magoado por coisas banais... viva e seja feliz.
ResponderExcluirO importante é saber a hora exata de sair fora, talvez a mágoa seja menor. Aline
ResponderExcluirNunca me perdoei por haver perdoado um idiota que me fez chorar varias vezes.
ResponderExcluirEu também passa por isso!
ExcluirA mulher quando ama fica cega! Perdoa!
ResponderExcluirSou capaz de perdoar por amor!
ResponderExcluirGuardo na paleta. Não perdoo. Fábio
ResponderExcluirPedro lhe faz a pergunta: “Senhor, quantas vezes terei que perdoar a meu irmão, se pecar contra mim? Até sete vezes?”.
ResponderExcluirE Jesus: “Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete vezes”.
Só para Deuses o perdão!
Ainda bem que sou uma mera mortal!
ResponderExcluir"O perdão quase nunca é racional, na maior parte das vezes é incompreensível decisão direta do coração " Carpinejar
ResponderExcluirEu concordo!
O coração tem suas razões para perdoar.
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