quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Tempo útil

 

Era uma vez, há muito tempo atrás, um Ildo que frequentava um consultório de terapia analítica e tinha uma técnica muito singular de se comportar. Colocava seu despertador para tocar quinze minutos antes do final da sessão com o objetivo de orientar sua fala nos próximos minutos.

Depois de algumas consultas, o terapeuta percebeu aquela rotina e, intrigado com aquele sobressalto contumaz, perguntou o que significava aquele barulho acionado em todas as sessões. Respondi que precisava saber quanto tempo faltava para o término da consulta, pois não gostaria de iniciar um assunto importante e delicado e abruptamente ser interrompido pelo despertador do terapeuta sugerindo que continuássemos a conversa na próxima semana. Preferia deixar o assunto pendente, mas não interrompido. Já acontecera em situações anteriores e aquilo havia me deixado muito chateado.

Considerava uma falta de empatia e interesse, pois estava falando algo vital para minha saúde física e mental e o terapeuta, escravo do relógio, transferia o problema para um ponto futuro. Expressava ali toda minha indignação, com o terapeuta e com o mundo.

Serenamente o terapeuta explicou que o controle do tempo era prerrogativa dele e não do paciente, aproveitando para introduzir sua orientação sobre tempo útil. Se ele achasse que a consulta deveria ultrapassar o tempo combinado, seria prorrogada. De forma inversa, se julgasse que deveria ser interrompida antes da hora aprazada, assim seria feito. O que importava em uma consulta é que o tempo despendido fosse proveitoso.

Restava saber na prática o que significava tempo útil, mas já que o terapeuta era ele, o termo fora criado pelo próprio, deixei as possíveis prorrogações ou interrupções a seu critério. Eventualmente ainda o provocava no meio de alguma sessão quando lhe dizia que por mim poderíamos encerrar a consulta naquele instante, pois o tempo útil havia sido alcançado e o insight adquirido naquele momento valia por umas cinco sessões de terapia.

Ele sequer se abalava., sua expressão facial jamais se alterava. Certa vez me respondeu dizendo que se eu pensava daquela maneira, seria justo então que lhe pagasse o valor de cinco consultas, pois o que importava mesmo era a utilidade e não o tempo de cada sessão.  Comecei a ter mais cuidado com as palavras. Cada uma destas minhas transferências fornecia um material riquíssimo para que ele me compreendesse melhor.

Passei então a prestar atenção no significado da palavra útil. Seria um termo equivoco? Afinal, o que quer dizer um dia útil? Na sociedade dos homens parece ser o dia em que as empresas produzem, os bancos pagam e recebem, as repartições públicas funcionam. Domingos e feriados não são considerados dias úteis. Mas isso não é assim para todo mundo.

Não precisamos ser produtivos todos os dias. Está bem só desfrutar de existir, abraçar sem nada para celebrar, jogar conversa fora, admirar um por do sol, caminhar sem rumo, amar sem porquês, não olhar para o relógio. A eternidade é feita destes agoras

Para alguns não produzir é perda de tempo. Benjamin Franklin já dizia em sua frase memorável “Tempo é dinheiro”. Para outros, o importante não é ganhar tempo, mas sim perdê-lo. O ócio, criativo ou não, faz parte do bem viver, ou melhor, é essencial e útil para uma vida saudável.

Ainda preocupado com a equivocidade do termo útil, estudei seu oposto, a inutilidade. Existe algo inútil nesta vida? Qual a utilidade de estudar logaritmo, raiz quadrada, fórmula de Báscara, quando se pensa em ser médico ou músico? Se você estuda o ano inteiro para passar no vestibular e não é aprovado, seu preparo foi em vão, o tempo de estudo foi perdido? Os minutos que fico calado na terapia são inúteis? Meu silêncio abriga o infinito, ali cabem amores e histórias que não cabem nas bocas dos mais falantes. Falar demais é para iniciantes. Falar de menos nunca é inútil.

Vida útil, dia útil ou mesmo tempo útil de uma terapia se configuram como termos equívocos, pois remetem a uma medida em horas ou minutos de serventia. Útil não é sinônimo de bom, belo ou necessário.  A utilidade de uma vida, um dia ou um tempo se reconhece pela capacidade de promover mudanças positivas e pelas boas lembranças que provocam em nossa memória e na dos que nos rodeiam.

Tempo útil tem a ver com estar junto, consigo e com o próximo. Estar junto não é estar no mesmo espaço, mas no mesmo tempo. Cada segundo é uma oportunidade.

Artigo publicado na edição de verão 2022 da Revista da Casa da Filosofia Clinica

www.casadafilosofiaclinica.blogspot.com

Um comentário:

  1. "Não há o que não haja". Penso que poderia haver o meio termo entre o analista e o analisado, porém quem fala poderá, em alguns ocasiões, estar com pouco ânimo de fala, outros dias poderá partir de uma fala interligados em fatos não sequenciais. O tempo subjetivo do analisado é o verdadeiro tempo ao meu ver, ele é que, teria que colocar um ponto final na sessão, pois, alguns transbordam toda sua capacidade de falar e expressar-se com desenvoltura, de modos mais variados possíveis. Quanto a utilidade do tempo poderia argumentar, que quase tudo, em algum momento de nossas vidas, conscientemente ou não será reaproveitado. Como poderíamos codificar ou decodificar o entrelaçar de nossa cognição, as mesclas dos vários momentos de aprendizados poderão ser reapresentados como múltiplas formas epistemológica, suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história. Vai saber como cada cérebro faz seus desdobramentos.

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