No instante em que a pessoa recebe o diagnóstico de uma doença
terminal, ela começa a morrer. Se você pensa assim, talvez contando a história
de Miguel, possa lhe mostrar que é possível acontecer exatamente o contrário,
nascer neste momento fatídico e passar a viver o melhor e o pior de si. Não é
preciso mais representar um personagem, não há mais tempo e importância para
isso. A proximidade da morte abre espaço para um estado de humanidade jamais
antes experimentado.
Ao realizar seu check-up de rotina anual, Miguel descobriu um
exame alterado. Parecia estar com a saúde perfeita, mas aquele número estampado
no papel do laboratório contradizia sua energia e higidez. Os médicos lhe deram
seis meses de vida. Não se revoltou, não pensou que o exame estava errado, não
achou que estava sendo punido, não se considerou azarado, não se culpou, aceitou
a possibilidade iminente de morte, evitou negar os prognósticos médicos e, ao
invés de morrer, passou a viver um luto antecipado.
Vou explicar. Foi descrito em 1944 um fenômeno que acontecia com esposas de soldados que iam para a guerra. Saber que talvez eles não voltassem, acionava um sentimento de perda e todas as consequências emocionais decorrentes. Batizaram esta situação de luto antecipatório.
Miguel sabia que iria morrer em breve, mas ainda não sabia o que
fazer até o dia da sua partida. Passou então a viver o luto antecipatório. Logo
no primeiro dia aprendeu uma importante lição: não dava pra comprar ninguém pra
morrer em seu lugar. Era tudo com ele. Precisava ajeitar negócios financeiros,
resolver questões sentimentais, realizar sonhos e fantasias interrompidos. Muito
antes de a morte chegar, precisava lidar com perdas físicas e simbólicas de
coisas e relações.
Talvez perdesse a autonomia, independência, autoestima, poder,
segurança, imagem corporal, funções físicas, respeito dos outros, vínculos, perspectiva
de futuro. Tinha muito por fazer e pensar, mas restava pouco tempo. Não tinha
tempo a perder. Todo sofrimento é uma urgência.
Havia ainda um agravante. O mundo estava diante da fase aguda da
pandemia do Covid 19. Miguel não podia viajar, não podia frequentar festas, não
podia jantar em bons restaurantes, não podia abraçar, não podia se encontrar
com pessoas. Nem mesmo a igreja podia frequentar. Decidiu então que ainda não era a hora morrer,
não estava pronto. Sabia que até hoje ninguém havia conseguido ludibriar a
morte, morrer era inegociável. Teria o
desafio de viver uma vida normal em condições anormais.
Miguel não tinha escolha. Se ficasse em casa, morreria da
doença; saindo para a rua, seria atacado pelo vírus. Optou por se proteger
entrando para dentro de si. Não tinha medo da morte, tinha incertezas. Como
seriam seus dias dali para frente, existe vida após a morte, qual o significado
de sua existência, como ficariam seus entes queridos? Cada dia a mais por aqui,
por si só, já seria uma nova vida; cada resposta um consolo, cada desejo uma
prioridade.
Antigamente a morte fazia parte do dia-a-dia. As pessoas morriam
em casa, cercadas por familiares e conhecidos. A morte fazia parte da vida.
Hoje as pessoas estão morrendo no hospital, sozinhas, no meio de aparelhos,
sedadas. Com a pandemia, nem velórios são permitidos. O falecido, além de não
poder se despedir, não pode escolher como quer morrer, não pode sequer fazer o
luto por sua própria vida. Miguel queria ter uma partida digna, bela e sublime.
Isto era agora sua prioridade.
Miguel sabia que em breve morreria por uma doença. A explicação
de sua morte seria a enfermidade, mas isto já não lhe interessava mais. O nome
da doença era apenas o pico do iceberg. O importante agora não era o
diagnóstico ou o tratamento descritos nos manuais de medicina, e sim o que ele
faria com o tempo que lhe restava. Já havia aproveitado várias experiências
humanas arriscando a vida. Esquiou, saltou de paraquedas, voou num balão,
escalou montanhas, fez trilhas. Zombou e correu da morte tempo suficiente, não precisava mais
disto. Chegara a hora de se aproximar de uma maneira menos glamourosa, mas
certamente, mais autêntica e segura.
Dizem que o que fica de uma pessoa depois que se vai deste mundo
são os sentimentos que ela proporcionou e a história que construiu em vida.
Você não pode mais vê-la, abraçá-la, tocá-la, sentir seu cheiro. Ela morreu, ficou invisível, intocável, assim
como os sentimentos e a memória de seus atos. O amor, carinho, respeito e até
mesmo ódio não morrem junto com a pessoa, continuam vivos naqueles que ficaram.
Miguel escreveu uma longa carta se despedindo. Teve o cuidado de
não enviar pela internet, redigiu à moda antiga, papel e caneta. Mandou
entregar pessoalmente, junto com uma foto em que nos abraçávamos e a camiseta
que usava quando íamos ao estádio torcer por nosso time. Pediu perdão, perdoou,
recordou momentos alegres, demonstrou seu amor de forma pura e direta. Disse também
que se houver uma vida lá em cima, vai interferir, cuidar e lutar por mim. Assim
como a morte, sentimentos também são inegociáveis e intransferíveis.
Não teve tempo nem abraços suficientes para uma despedida como
merecia, não obteve todas as respostas que procurava, no entanto, soube sabiamente despertar a alegria e a
coragem de viver cada dia como se fosse o último. Uma boa morte é o resultado
de uma boa vida. Você não morreu meu amigo, arranjei um cantinho dentro do meu
coração pra você viver.
Uma bela reflexão para esse momento. Desperta a alegria e a coragem no outro possivelmente seria uma tarefa difícil. Gostaria muito de ter este maravilhoso dom. Como poderia eu saber as palavras ou os gestos que o outro espera em determinado momento, se o mesmo não disponibilizar o tempo suficiente para tal aproximações e entendimentos. Muitas são as questões que poderiam ser ensinadas, a qualquer circunstâncias ou nestes momentos de passagem. Desejo a todos, que tenham uma boa vida!
ResponderExcluirQuando você realmente gosta reserva um cantinho no coração. Quando ama ocupa todo coração.
ResponderExcluirTem muita gente andando por aí que já morreu há muito tempo...multiplas formas de estar morto!
ResponderExcluirA morte não é a maior perda da vida. A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos.
ResponderExcluirNunca vamos ter todas as respostas que procuramos na vida. Alguns ficam neuróticos perguntando, questionando, pesquisando, outros ficam em paz sabendo que nem tudo está ao nosso alcance. Há mais coisas entre o céu e a terra que o ser humano possa imaginar ou entender.
ResponderExcluirEu não quero morrer, só quero parar de existir por um tempo.
ResponderExcluirEu entendo...
ExcluirNo instante em que a pessoa recebe o diagnóstico de uma doença terminal, ela não começa a morrer, começa a dar o real valor para a vida e mesmo com as limitações que possa vir a sofrer, espiritualmente talvez sua vida comece a fazer sentido exatamente ali naquele momento crucial
ResponderExcluirIsabel Allende
ResponderExcluirPerguntada sobre o principal medo que implica o vírus, *que é o da morte*, a escritora contou que desde que a sua filha Paula morreu, há 27 anos, perdeu o medo para sempre:
“Eu a vi morrer em meus braços, e percebi que a morte é como o nascimento, é uma transição, um limiar, e perdi o medo no pessoal. Sei que se esse vírus me pegar tenho mais chance de morrer do que a média da população, já que faço parte do grupo mais vulnerável (tenho 77 anos). Então a possibilidade de morrer se apresenta muito clara para mim neste momento. Eu a vejo com curiosidade e sem medo.
O que a pandemia me ensinou é a soltar coisas, a perceber o pouco que eu preciso. Não preciso comprar, não preciso de mais roupas, não preciso ir a lugar nenhum, nem viajar. Eu acho que tenho demais. Eu vejo à minha volta e digo: pra que tudo isso? Para que eu preciso de mais de dois pratos? Percebo quem são os verdadeiros amigos e as pessoas com quem eu quero estar.
Concordo com Isabel, feliz de quem está com quem quer estar! Não precisa de mais nada.
Escritora surreal!
ExcluirPalavras sábias!
Há quem prefira os bens, as compras, as viagens, a luxúria... não aprendeu nada na pandemia.
Amanhã pode estar embaixo da terra!
Denise
Viver feliz para sempre não existe, mas talvez morrer feliz para sempre possa ser viável. É o que muitas religiões pregam. Se você for do bem aqui na terra, será melhor ainda no paraíso.
ResponderExcluirViver, morrer...no momento existir!
ResponderExcluirBoa história.
ResponderExcluirDesconheco o que é viver feliz. Talvez quando morrer vou encontrar a tal felicidade. No momento vou levando e não me iludo. Perdi a capacidade de sonhar.
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