terça-feira, 3 de novembro de 2020

Esperando o Covid partir


Estou escrevendo estas linhas preso no isolamento profilático/terapêutico do Coronavirus. Não está sendo fácil ficar trancado entre quatro paredes, sem contato físico social e, pior de tudo, sem saber o que vai acontecer comigo nos próximos dias. Acho que já passei por todas as fases psicológicas deste adoecer recluso. Tomara que sim, pois já estou quase chegando no meu limite de autocontrole. Vou tentar contar minha experiência, assim me sinto útil e, ao mesmo tempo,  exercito um pouco meu cérebro já cansado desta novela estressante  e malquista.

A primeira fase foi a de auto diagnóstico, mas também poderia ser chamada de hipocondríaca.  Comecei a sentir uma tosse. Leve, seca, e nem muito frequente. Logo imaginei que poderia ter me contaminado e fui investigar outros sintomas. Cheirava tudo à minha volta para ver se ainda possuía olfato. Desconfiei que não estava mais sentindo o mesmo gosto pela comida. Suspeitei que estivesse com falta de ar durante a noite. Também comecei a antever que logo iniciaria a febre, acompanhada de dores pelo corpo. Termômetro ao lado da cama, conferia a temperatura de hora em hora.  De concreto mesmo, só uma tosse seca muito insignificante, o que me levou para a segunda fase: negação.

Aquilo não poderia ser uma contaminação, afinal estava me cuidando, tomava todas as precauções, não podia estar acontecendo comigo. Deveria ser um simples resfriado ou garganta seca devida ao calor ou ar condicionado. Ignorei o sintoma e segui com a vida como se nada estivesse acontecendo, evitando pensar na tosse. No entanto, passei para a terceira etapa, a dúvida.


E se eu estivesse contaminado em fase inicial, quase assintomático, transmitindo a doença para as pessoas ao meu redor? Seria válido fazer o teste, pagando cerca de trezentos reais, quando o sintoma era apenas uma leve tosse? Quem poderia me aconselhar? Deveria ir a um posto de saúde? Não sei tive uma recaída para a fase de negação ou já havia passado para uma nova etapa: inércia, visto que não tomei atitude alguma. Não sabia o que fazer, sentia-me desorientado, confuso, paralisado. Esperei pra ver no que ia dar. E logo deu.

A temperatura começou a subir e junto com ela, vieram as dores pelo corpo. Mas não eram dores de quem está começando a treinar na academia de ginástica, malhou por uma hora e no dia seguinte está dolorido. As dores eram violentas, me derrubaram, não conseguia levantar da cama. Erguer o braço já era um sacrifício, mastigar a comida um incômodo. Não tive condições físicas nem de realizar o teste do PCR. Iniciou então a pior fase, o medo.

Por orientação médica, deveria ficar em casa e só me dirigir ao hospital em caso de falta de ar. Para a febre e as dores faria tratamento com analgésicos e antitérmicos. Nada de antibióticos ou vermífugos. E se no meio da noite sentisse falta de ar? Qual a intensidade do desconforto para classificar como falta de ar? Perdi algumas noites de sono preocupado, imaginando que a falta de ar estava iniciando. Não queria dormir com medo de não acordar no dia seguinte. Algumas vezes me peguei ofegante na madrugada, não sabia distinguir se era ansiedade ou dispneia. Cheguei a me vestir para ir ao hospital, mas não foi preciso, a respiração melhorou.

Não sei se o medo era do hospital, da doença, do isolamento ou da morte. A sensação é de total impotência. Você sozinho num quarto, fazendo a terapia recomendada pelos médicos, sem garantia de efetividade. Não sabe se amanhã estará melhor ou vai piorar. O silêncio da noite só era quebrado pelo uivar do vento na janela ou de algum carro barulhento cruzando a rua. Perdi a vontade de assistir filmes, ler livros, conversar com pessoas. Perdi também o controle da situação.  Dizem que algumas pessoas sofrem de tédio e depressão no isolamento. Não tive tempo para isso, o medo era muito maior. Não há nada que você possa fazer pra se curar. Só rezar e esperar.

Esperar significa não fazer, porque não depende de nós. A espera passa por uma sensação dolorida do tempo, que demora a passar.  Então, enquanto esperava, rezei. Creio em Deus, o que me ajudou muito. Rezei, orei, chorei, meditei, arrependi, pedi perdão. Minha vida estava em jogo, uma boa hora para avaliar como foi minha existência até aquele momento. Talvez esta fase possa ser chamada de reflexão ou reencontro.

Numa destas noites mal dormidas, sonhei que a cidade estava dividida. De um lado viviam as pessoas já curadas e com anticorpos protetores contra a doença. Podiam circular livremente, ir à praia, viajar, fazer festas, sem preocupação alguma. Do outro lado, presas em um gueto com muros muito altos estavam pessoas sadias, ainda não contaminadas. Superprotegidas, recebiam alimentação esterilizada através de pequenas janelas nas paredes do gueto. Não estavam isoladas dentro de casa, mas eram proibidas de sair além dos muros, recebiam medicação profilática e aguardavam a tão prometida vacina redentora.

Havia ainda um grande hospital, onde tratavam os doentes, mas estava quase vazio, pois a população se dividia em pessoas com anticorpos positivos curadas e pessoas sadias sem anticorpos. Doentes e mortes por coronavirus não mais existiam. O que me impressionou no sonho foi que as pessoas não aprenderam nada com a pandemia. As que estavam livres esqueceram-se das prisioneiras do gueto, da pandemia e das dificuldades que passaram. Viraram as costas para os outros. Só pensavam em si, em aproveitar o tempo perdido e na vida que lhes havia sido devolvida. Ainda bem que foi só um sonho. 

Vencidas as etapas do medo e reflexão, começou a fase carinhosamente apelidada de detetive. Mentalmente fazia o exercício de voltar no tempo e tentar descobrir onde e quando havia me contaminado.  Desconfiava de várias pessoas e situações. Fazia contato para saber se estavam bem ou também haviam se contaminado. Não consegui chegar a nenhuma conclusão definitiva. Na prática não mudaria em nada meu prognóstico, no entanto, era incontrolável meu desejo investigativo. Talvez tenha sido melhor não esclarecer como me contaminei, vai que surgisse um sentimento de revolta.

Eis que de repente, não mais que de repente, acordo numa nova fase: esperança. É uma espera modificada, porque tem certa dose de otimismo e alivia a dor e o sofrimento daquele momento.  Tenho a impressão que estou me sentindo melhor, volto a ter forças, vontade, apetite, humor. Começo a acreditar que vou conseguir escapar. Sinto também gratidão, o ponto positivo e o aprendizado maior deste isolamento. Você não consegue sair sozinho desta doença, vai precisar de ajuda em vários níveis. Bondade, compaixão, amparo, acolhimento, amor, desprendimento, coragem, começam a surgir de onde a gente nem espera.

No dia a dia estamos conectados pela internet, mas não necessariamente próximos de verdade. No isolamento, descobri que por trás daquela porta, havia muito mais que a comida, medicação e roupa limpa que me alcançavam. Existia a conexão que ultrapassava a barreira da porta. Estava sozinho no quarto, mas em momento algum me senti desamparado. Não consigo explicar direito esta sensação, é algo novo para mim, mas posso dizer que senti uma enorme segurança ao saber que não estava só em minha quarentena solitária. Além de Deus, havia muita gente comigo. Minha gratidão a todos.

Agora devo entrar em outra fase: saída da quarentena. Não sei como será, mas espero ter aprendido a lição. A solidão compele para a solidariedade. Ah! Já ia esquecendo, faltou contar que no sonho havia uma passagem secreta para fora do gueto. Alguns bem aventurados conseguiram escapar. Precisavam apenas descobrir a senha oculta e digitar. Somente duas letrinhas para ultrapassar os limites e se libertar: Fé.  Curar sem entender a doença.

PS. Na vida de um escritor, ficção e realidade podem se mesclar dentro de um mesmo conto.

 

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17 comentários:

  1. Adorei!
    Um belo texto!
    Eu tenho uma passagem secreta (na verdade um Secret Garden), a senha dou para quem eu chego na alma.
    Quanto o Sr.Covid que se mantenha bem longe de mim.
    Abraços



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  2. Sei te dizer um pouco a respeito do que é estar do outro lado da moeda. Se preocupar com aquele que esta com o vírus e não podermos checar todos os seu sintomas, embalar seus medos e tentar diminuir as preocupações. Lados opostos que nos remetem a uma recíproca de inversão. Tenho cruzado constantemente esta passagem secreta e visitado aqueles que necessitaram, o corpo fica mas a alma, esta não sossega. Muitas preces em forma de bálsamo foram proferidas... Que o altíssimo nos dê forças para vencer esta passagem, e que dias melhores se anunciem.

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  3. Já vai tarde Covid! Muito bom artigo

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  4. Todos deveriam ter fé, não apenas em Deus, mas na humanidade também. Pena que estamos perdendo a fé em ambos.

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  5. Dr. Ildo, eu sonho todos os dias com o término do isolamento e da pandemia, mas quando acordo, continua tudo igual, até pior. Está voltando e aumentando. As vezes penso em me contaminar pra ser tratada, me curar e poder ter uma vida mais ou menos normal, mas tenho medo de como vou reagir ao virus. Só posso dizer que estou cansada de não fazer nada. Preferia estar cansada de agitar.

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  6. Precisamos aprender com a pandemia, também não aguento mais.
    Confesso estou aprendendo muito sobre mim e sobre os outros.

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    1. O vírus um dia vai embora, mas espero que as lições da pandemia permaneçam. E são tantas. Especialmente no que se refere a conhecer melhor as pessoas que se dizem amigas.

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    2. Muitas lições...eu além de fazer uma limpa nos que se diziam amigos, decidi esquecer o embuste. Amor é um caminho percorrido à dois...eu amava sozinha.

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    3. Fez bem miga, quando um não quer, dois não amam. Embuste vai pro lixo. Ana

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    4. A pandemia me ajudou a perceber, o difícil foi reconhecer e tomar um atitude.
      Hoje estou mais leve e feliz.

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  7. Espero ansiosa o COVID partir e com ele todas as dificuldades e perdas.
    2020 não foi um ano perdido! Consegui organizar minha vida.

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  8. Preferi ver o embuste partir e ficar mais um tempo com o vírus. O embuste me fez mais mal. O vírus me parece honesto, disse ao que veio e quanto tempo vai ficar. O embuste só enrolou.

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    1. Enquanto a mulher chora, abraça, suspira, treme, ri, grita e cora, o embuste apenas tem o silêncio constrangido ou a racionalidade.
      E a conversa descamba para a mútua incompreensão.
      Aos poucos a mulher vai deixando de amar, já não se importa mais...cansa e deixa o embuste ir... antes do vírus.
      Concordo, o vírus é honesto.
      Mariana

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  9. Comparar um vírus com embuste é totalmente irracional, vírus é falar de vida, embuste tem vários por aí, pega quem quer, é uma escolha, senão não quer troca, fácil assim.

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    1. Só poder ser homem escrevendo. Sensibilidade zero.

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  10. Porto Alegre está esquecendo que o vírus está com força total. Aglomerações, comemorações, encontros...depois não adianta lamentar.
    Uma amiga ontem me ligou, em recuperação de COVID perdeu 16 kg em 20 dias e não consegue ficar em pé. Saudável, corredora.
    Ele não foi embora...

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  11. Partidas e chegadas como um painel de aeroporto.
    A partida do COVID não está confirmada.
    Tem muito embuste que eu gostaria que estivesse no embarque imediato.

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