segunda-feira, 5 de outubro de 2020

FECHADO PRA BALANÇO

 

Fechei para balanço. O que isso quer dizer? Ainda não sei direito, por isso fechei. No ramo comercial significa que a empresa está avaliando as atividades realizadas e fazendo um levantamento de tudo o que é necessário para continuar funcionando. As portas permanecem fechadas, mas lá dentro o trabalho continua. Conferência de estoque, diferenças, furos, sobras.

Normalmente fazem isso nos últimos dias de dezembro, ou então, na primeira semana de janeiro. Durante o ano a correria é tanta que não há como parar e examinar com uma visão de médio e longo prazo como andam as coisas. É tudo pra ontem. Aproveitei a parada obrigatória da quarentena e também fechei as portas, só que meu balanço é pessoal, sentimental.

Talvez este texto esteja um pouco anárquico, mas isto é uma característica inerente ao balanço. Posso garantir que foram várias tentativas de colocar em palavras aquilo que empresas demonstram em números e gráficos. Se expressar sentimentos em palavras já é algo para poucos, fazer um balanço de sentimentos é quase impossível. Em todo caso, enquanto liquido lembranças ruins, expurgo lixos sentimentais, melhor permanecer fechado para evitar mágoas desnecessárias.

Alguns anos atrás peregrinei pelo Caminho de Santiago de Compostela – 350 quilômetros caminhando.  Ao contrário do fechamento de agora, estava aberto para o mundo. Queria conhecer novos lugares, novas pessoas, novas experiências. No inicio tudo era diferente, deslumbrante, novidade. Batia fotos, registrava um diário, enviava relatórios para família. Aos poucos, fui realmente entrando no caminho (ou o caminho foi entrando em mim) e a jornada se tornou cada vez mais interior. Caminhava com o corpo, andava com a alma. Pararam as fotos, começaram os significados. Demorou um pouco para o processo iniciar, era preciso me desligar do trabalho, celular, noticiário, família, pra sobrar tempo e conseguir entrar em mim.

Com a quarentena o inicio foi parecido. Um mundo de novidades na tela do computador. Apesar de a pandemia estar dizimando milhares de pessoas, havia filmes, livros, shows, palestras, para aproveitar enquanto estivesse confinado entre quatro paredes. Desta vez nem precisava caminhar, alojar em albergues, passar fome ou ter bolhas nos pés. Bastava sentar no sofá, pegar um bom lanche, ligar o ar condicionado, assistir uma comédia engraçada e fugir da triste realidade que arrasava o planeta. Dormir até tarde também serviu como uma boa rota de alienação.

Quando um animal é preso numa jaula, não fica bem, não está em seu habitat natural. Embora nós, humanos, tenhamos evoluído e saído da selva, a selva não saiu de nós, o instinto animal permaneceu adormecido. Fomos aprisionados no conforto do lar e por melhor que seja nossa jaula, ainda assim é uma clausura. Com o passar dos dias, o sofá macio de couro foi se transformando em um catre desconfortável com função de divã.  Comecei a conversar comigo e escutar a voz que gritava dentro de mim, mas o barulho da televisão não deixava escutar. Percebi que os aplicativos estavam me cegando, ensurdecendo e alienando. As iguarias e guloseimas deliciosas alimentavam o corpo, mas envenenavam a alma. Desliguei os aparelhos eletrônicos, tranquei a porta, cerrei os olhos, fechei pra balanço.

Algumas pessoas me perguntam o que estou produzindo durante a quarentena. Escrevendo um novo livro, fazendo uma pós-graduação, estudando para um concurso, aprendendo a cozinhar, preparando palestras, shows de mágica? Nada disso. Não estou fazendo nada palpável, visível ou rentável, mas isso não quer dizer que estou totalmente parado.  Parar não significa morrer. Aquilo que nos mata é não saber viver parados, e muitas vezes, parar e a melhor maneira de lá chegar. Aproveito o longo tempo não produtivo no sofá para não fazer, mas para sentir.

Sentir é um verbo que se conjuga para dentro, fazer é conjugado para fora. Estou num retiro interior, escutando meu silêncio e fazendo a contabilidade dos acertos e desencontros emocionais. Sentir, embora às vezes possa machucar, serve como bussola para saber onde estou e para onde quero ir. Sentir já é razão mais que suficiente para parar. Senti de tudo um pouco. Indiferença, desrespeito, descaso, desamor, falsidade, desprezo, medo, abandono, ironia, carência, vergonha alheia, raiva. Não queria ter sentido, mas aconteceu. Quem mandou desligar a televisão e parar pra fazer um balanço? Senti também carinho, consideração, amizade, amor, simpatia, admiração, apego, fraternidade, compaixão, doação, acolhimento, coragem, saudade e principalmente falta. Não falta de ar, falta daqueles que se foram e falta daqueles que disseram que vinham e nem vieram.

Espero conseguir fazer um balanço legal disso tudo. Não tenho grandes expectativas, já que o surgimento ou desaparecimento destes sentimentos não depende só de mim. Estou fazendo a minha parte, que por enquanto é fechar pra balanço. Não está fácil lidar com tudo isso. Sinto-me confuso, inseguro, não tenho ideia do que fazer para que saiamos dessa pandemia com um planeta mais sensível e justo. Se a solução dos problemas fosse caminhar 1000 quilômetros, já estaria na estrada.  Quando vai terminar o balanço? Não sei, mas abrir as minhas portas não vai ter nada a ver com o desenvolvimento de uma vacina efetiva, descoberta da cura ou eliminação do vírus. O furo é mais embaixo.

Tenho uma orquídea em minha casa que passa o ano inteiro fechada. Uma vez por ano, geralmente na primavera, abre uma linda flor, que ficou doze meses se preparando pra embelezar a sala. Talvez este ano não abra. Será assim também comigo, quando for a hora, o balanço termina e as portas abrem. Já se passaram seis longos e sentidos meses.   

 

  

 

 

 





 

11 comentários:

  1. Dr Ildo
    Muito Bom! Sempre é bom fechar para o balanço afetivo. Desejo que seu balanco seja positivo!
    Abraços

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  2. O balanço sempre é necessário. Reavaliar nossa vida, nossas condutas e nossas escolhas. Que momento para análise...necessário.
    Suelen

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  3. Confia no tempo! Este possivelmente será o bálsamo para novos dias, muitos estarão passando por esta profunda metamorfose existencial. Olha o quanto aprendeste sobre este "SER", que não conhecias, as coisas que passou a apreciar e outras tantas que retirou ou puseste de lado. Eu descobri que gosto de poesia , "Poemas en la voz de Enrique Lizalde". Confia, muitas vezes precisamos desta solidão para um reencontro com nossa própria alma. Aquela sensação de um carro desgovernado pode ainda permanecer por algum tempo, mas haverá de reencontrar o caminho...

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  4. Na minha experiência de vida, se um cara me disse-se fechei para balanço, em outras palavras: não estou a fim de vc! É claro, é gritante.
    Nunca passei por essa vivencia mas sabe lá...
    Muitas vezes ñ queremos entender...
    Beatriz

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  5. 2020 não vai deixar saudades, confesso um ano difícil.
    12 anos de casado e nos separamos, muita coisa veio a tona na pandemia, coisas que não valiam a pena. Como o sr relatou lembranças ruins, expurgo lixos sentimentais.
    Sabedoria de pai: mais vale uma casa nova que um monte de casinhas velhas.
    Não escutei, fechei para balanço também
    Rui

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  6. Não acredito em balanço afetivo acredito em responsabilidade afetiva. Não minta, não engane, não iluda, não se aproveite.

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    1. Perfeito. Balanço existencial só é necessário para quem não vive a plenitude de não mentir, não enganar, não iludir, não se aproveita esse tipo de sentimento e, não é necessário uma pandemia para poder fazer essa análise. Tenho pena de pessoas assim, viver em paz e poder não se preocupar com nada pois suas ações são as mesmas das vivências, isso sim faz todo sentido.

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    2. Comentário sensacional! Não brinque com sentimentos dos outros.
      Tenha responsabilidade ou pagarás com a lei do retorno.
      Bia

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  7. Vivendo um Balanço Sentimental...e Caio Fernando Abreu consegue descrever como me sinto:

    " Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai aguentar, mas aguenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar."
    Claudia

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  8. Muito fácil falar em responsabilidade afetiva, mas como se aprende isso? Por acaso todos nascem sabendo e nunca se enganam, nunca erram? Concordo com o Dr. Ildo, sempre é hora de se fazer um balanço afetivo e crescer.
    Acaso acham que a pandemia fez a população aprender alguma coisa, mudar pra melhor? Se tiverem paciência, escutem o horário politico pelo menos uma vez e então poderão ter uma idéia do quão importante é um balanço sentimental neste momento. Atire a primeira pedra quem nunca falhou afetivamente.

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