segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Espelho, espelho meu



Alguns anos atrás, discutíamos entre amigos, em tom de brincadeira, quem era mais importante para a sociedade, o médico ou o desembargador. Argumentei que o desembargador teria poderes para dar ordens de prender ou soltar alguém da prisão, no entanto, não possuía a autoridade médica para solicitar que uma pessoa se despisse para ser examinada. Ordenar era muito diferente de solicitar.

E daí? Comentou o magistrado, não é isto que torna um profissional mais importante que o outro, eu sou chamado de excelência e você não. Além disso, continuou ele, ambos somos funcionários públicos, concursados na mesma época, não obstante, meu salário é três vezes maior que o seu. Deve haver alguma razão para isto. Imediatamente repliquei: razão não! arbitrariedade, injustiça, iniquidade, isto sim é o motivo de tamanha desigualdade. E digo mais, injuriava-o animado, as chances de você precisar de meus serviços são infinitamente maiores que as minhas de precisar dos seus, um dia você vai aprender a valorizar os médicos.

Segui com minha tese dizendo a ele que quando estivesse dentro de um avião em pleno vôo e a aeromoça solicitasse a presença de um médico a bordo, que ele levantasse a mão dizendo ser desembargador e se oferecesse para ajudá-la. Ou então, quando estivesse no saguão do tribunal, ou durante uma audiência e alguém apresentasse uma parada cardíaca ou uma crise convulsiva, que o mesmo tirasse sua toga impecável e realizasse uma respiração boca a boca ou uma desfibrilação cardíaca.

Em tom de desafio, continuei meu discurso explicando que medicina não era uma ciência exata, e que, mesmo colhendo toda a história do paciente, realizando um exame físico minucioso, analisando exames laboratoriais e de imagem, nem sempre o médico conseguia acertar o diagnóstico e tratamento. Como qualquer ser humano, estava sujeito a falhar. Apesar disso, muitos médicos se consideravam deuses. Juristas, de modo semelhante, porém mais altivos, consideravam-se oniscientes, portavam convicção absoluta em suas sentenças e tinham certeza que eram deuses.

A disputa se estendia acalorada até o momento em que meu oponente decretou uma sentença incontestável e encerrou a discussão. Está bem, mas eu sou mais bonito que você, disse ele como se estivesse na tribuna e mudou de assunto.

Na época, apesar de já sermos homens feitos, a discussão refletia uma brincadeira típica de adolescentes, cada qual querendo se mostrar melhor que o outro. Talvez houvesse mesmo um confronto natural por trás da diversão, visando a liderança intelectual do grupo de amigos. Entre machos das mais variadas espécies costuma haver disputa pela hegemonia do bando e direito às fêmeas.  Não importa, já passou, o fato é que não há uma profissão mais importante ou melhor que a outra, dependendo do contexto, um gari pode ser mais valioso que um médico, um desembargador, um deputado  ou até mesmo um presidente.

Frente a uma pandemia com milhares de mortes, estado de calamidade pública, quem seriam os profissionais mais capacitados para lidar com a situação e determinar políticas de saúde? Médicos ou desembargadores?  Alguma dúvida? Infectologistas, intensivistas, farmacologistas, clínicos, cardiologistas, pneumologistas, anestesiologistas estudam, pesquisam, publicam e dedicam suas vidas a salvar outras vidas. Estão ali, na linha de frente, noite e dia, décadas a fio arriscando suas vidas. É o que sabem e gostam de fazer. Ninguém melhor que eles pra dizer o que está acontecendo e o que precisa ser feito.

No Brasil, lamentavelmente, juristas, governantes e militares assumiram o comando da saúde, decretando distanciamentos sociais, recomendando tratamentos farmacológicos, comprando equipamentos médicos, fechando comércios, isolando cidades. Com que base científica? Onde estudaram, qual sua experiência em diagnosticar e tratar doenças? Por que não aceitam os preceitos médicos? Será que estão disputando beleza, poder ou algum ganho financeiro como fazíamos lá atrás na adolescência?

Deu no que deu. 2020 vai entrar para a história, a tragédia que poderia ser evitada.

PS – Aproveitando o recesso parlamentar, convidei meu amigo para nos ajudar no combate à pandemia. Levando em conta a carência de leitos hospitalares e respiradores, e visto que a formação de um desembargador era no sentido de realizar julgamentos e tomar decisões, sua experiência seria de enorme valia se o mesmo ficasse na portaria das Unidades de Pronto Atendimento e hospitais, definindo quem teria o direito de ser tratado e quem ficaria do lado de fora aguardando uma vaga para ser atendido. Seu oficio deixaria os médicos mais focados para fazer aquilo que realmente foram treinados e todos seriam beneficiados.

O desembargador cortou relações comigo, não quer mais me ouvir.



19 comentários:

  1. Dr Ildo muito interessante e atualizado o artigo. Parabéns!
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Acredito!!! É Por esse motivo que, cada vez mais, acredito na singularidade de cada ser humano.
    Outro dia vi o depoimento de um médico intitulando determinado remédio como se esse, fizesse parte de um partido político. Um remédio partidário. Fico perplexa de ver a movimentação das mais variadas áreas profissionais que poderiam realmente auxiliar nestes fadados tempos de pandemia. É claro que necessitamos das demais áreas para avaliarem, todo este contexto, evitando assim dubiedades e toda forma de desajustes, que nestes momentos possivelmente surgirão. ME DIGA AGORA, COMO CONFIAR O CONTROLE DE UMA PANDEMIA NA MÃO DE UM DETERMINADO DESEMBARGADOR? Eu apoio onde houver humanidade.

    ResponderExcluir
  3. Atualíssimo e excelente teu texto. Parabéns.

    ResponderExcluir
  4. Na minha época de estudante estava em dúvida se fazia vestibular para Medicina ou Direito. Escolhi a medicina e não me arrependo nem um pouquinho. Se tivesse escolhido Direito talvez estivesse ganhando mais, mas teria enorme vergonha do que meus colegas do Supremo estão fazendo com nosso país. A classe jurídica está totalmente desacreditada enquanto médicos são reconhecidos.

    ResponderExcluir
  5. Os médicos estão fazendo um limpo e digno trabalho na pandemia enquanto isso o judiciário...nem me atrevo a falar...

    ResponderExcluir
  6. Juízes, desembargadores, ministros, governadores e prefeitos estão esquecendo que são funcionários públicos, trabalham para o povo. Acho que esqueceram disso. Outorgamos a eles poderes executivo, legislativo e judiciário, mas em relação à saúde não deveriam ficar legislando e ordenando aquilo que não entendem e ouviram falar em alguma mídia social.

    ResponderExcluir
  7. Não perdeu nada em se afastar do desembargador. Deve ser um mala.

    ResponderExcluir
  8. Concordo deve ser mala e arrogante.

    ResponderExcluir
  9. Desembargadores, como o próprio nome diz, deveriam desembrulhar os embargos, resolver os problemas, fazer justiça. Não é o que fazem. Deixam processos mofar em suas prateleiras. A demora em fazer justiça transforma-se em injustiça. Vergonha da classe.

    ResponderExcluir
  10. Tem gente muito boa no judiciário e na medicina. Cabe a mim separar quem vale a pena compartilhar minha amizade.
    O que não presta, não quero.
    Jair

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Como classe, que nota você daria para o Judiciário e para a Medicina?

      Excluir
    2. Vou ser sincera
      JUDICIÁRIO 4
      MÉDICOS 10

      Excluir
    3. JUDICIÁRIO : 3
      MÉDICOS SUS: 6
      MÉDICOS SUS na pandemia: 10
      JUDICIÁRIO na pandemia: ZERO

      Excluir
    4. PLACAR:judiciário 3 X médicos 8

      Excluir
  11. Como o próprio nome diz, a única coisa boa num desemBARgador é o bar. Mas desembargaDOR, traz junto a dor.

    ResponderExcluir
  12. Pobre do país onde seus juizes precisam ser julgados. Infelizmente é o caso do Brasil, onde seus juizes são odiados pela população.

    ResponderExcluir