sábado, 21 de março de 2015

Vida de cão


    Como vai amigo Tião?


Estou escrevendo pra te contar as coisas estranhas que estão acontecendo nas minhas férias aqui na praia de Jurerê Internacional. Já ouvistes falar? É um lugar fantástico, nunca vi nada igual. Praia de gente rica e famosa. Mar azul, calmo, água quente, areia fininha, lanchas, iates, vendedores ambulantes, comida e bebida à vontade. Mas não pude aproveitar nada disto, nem vais acreditar.

Logo que chegamos no prédio onde iríamos veranear, bem em frente à praia, já estranhei. Parecia uma vitrine de loja. Todo envidraçado, com mármores, espelhos e lustres de cristal enormes. Quase fiquei cego de tanta luz e mal conseguia caminhar naquele piso escorregadio. De repente, apareceu um homem vestido de terno preto e gravata, me pegou no colo e me carregou até nosso apartamento. Nunca ninguém havia feito isto comigo, e por pouco não o mordi de tão assustado que fiquei.

Depois me explicaram que não permitem animais circulando nas áreas comuns do prédio. Dizem que podemos morder alguém, fazer baderna, quebrar os enfeites e sujar o piso das residências. Afinal de contas, fomos domesticados ou não?


Só me deixavam caminhar dentro do apartamento ou na rua. Mas caminhar não é aquilo que estamos acostumados a fazer, correndo atrás das carroças, dos carros, da boiada. Nada disso. Prenderam uma coleira em meu pescoço, amarrada numa corda de mais ou menos dois metros, e me obrigavam a andar no ritmo quase parando de dona Maria. Quando queria cheirar alguma árvore ou o traseiro de alguma cadelinha, recebia um puxão que quase me arrancava a cabeça fora. Precisei me acostumar a andar no passo dos humanos.

Mas isto não é tudo. Imagina a minha vergonha quando colocaram sapatinhos em minhas patas para que eu não as sujasse durante o passeio. Ainda bem que não encontrei nenhum conhecido por aqui. Nem latir eu podia. Cada vez que tentava dizer alguma coisa, expressar minha alegria ou reclamar de algo levantando a voz, imediatamente me mandavam calar para não perturbar os vizinhos. Sabe o que é ficar um dia inteiro sem falar nada, sem latir pra ninguém? Imagina então um mês inteiro.

Descobri também que nas minhas férias eu teria horário pra fazer xixi. Duas vezes por dia, na hora que eles determinavam, me pegavam no colo ou me colocavam num carrinho de bebê,  e me levavam  pra urinar na rua. Por via das dúvidas, colocaram um tapetinho em um canto da sacada para uma emergência, caso não conseguisse me controlar. Aquele nosso costume de marcar o território urinando em todos os postes e árvores foi abolido nas férias.

Outra coisa esquisita era ver o pessoal recolhendo minhas fezes na rua. Cada vez que eu fazia cocô na grama ou na calçada de alguma daquelas mansões de cinema, meus donos faziam cara de vergonha, olhavam em volta para ver se ninguém estava vendo, e, em seguida, colocavam minha “obra” num saco plástico e ficavam carregando aquilo como se fosse uma sacola de compras. Às vezes encontravam um conhecido, paravam e conversavam com aquela bolsa pendurada no braço por um bom tempo. Depois, jogavam no lixo.

Lembra como eram gostosos aqueles nossos banhos de chuva ou quando nadávamos horas a fio no rio? Pois aqui animais não podem entrar no mar, nem caminhar na praia. Muito menos ficar se rolando na areia. Sabe como eu tomava banho em Jurerê Internacional? Levavam-me para uma casa muito sofisticada, de nome Luxury Pet. Uma espécie de salão de beleza onde havia enormes banheiras de mármore importado, com hidromassagem, sais aromáticos, música relaxante e uma tal de cromoterapia. Muita frescura para um banho. Deixavam-me mergulhado meia hora naquele caldo perfumado, depois secador de cabelos e uma mulher quase arrancando meus pelos com uma escova pra ficarem lisinhos como os da Malvina Cruela, aquela dos 101 dálmatas.

Na saída, baforavam litros de perfume importado e então vinha a vergonha maior: um lencinho atado no pescoço, como se eu fosse um galã francês.  Nestas horas, esquecem que somos animais e nos tratam como humanos. Dona Maria chegava para me buscar no carrão com motorista, me cheirava, fazia carinhos e dizia sempre a mesma frase: -meu amorzinho querido, filhinho da mamãe.

Que história é essa de filhinho da mamãe? Acho que estes humanos não regulam bem das idéias. Minha mãe está ai na fazenda, com meus irmãos, correndo e latindo felizes pelos campos. Nascemos e fomos criados em volta da casa grande, onde nos colocavam restos de comida nos pratos e lambíamos os lábios com os ossos que atiravam para pegarmos. Desde pequeno me ensinaram a respeitar os donos da casa e obedecê-los. Depois me disseram que além da casa, eram nossos donos também. Nunca entendi direito esta relação de posse. Só porque vivo nos campos deles e me dão comida, isto significa que são meus donos?  Em todo o caso, a idéia de ter dono já foi incorporada desde que nasci, mas achar que eles são meus pais, chega a subestimar nossa inteligência.

Falando em comida, aqui não adianta fazer aquele nosso olhar de “cachorro pidão” implorando por algo comestível. A única coisa que me deram pra comer, durante todo o mês que aqui passamos, foram umas bolinhas industrializadas, importadas, antialérgicas, com gosto artificial de churrasco. Falsificado e ruim.  É uma tal de ração com proteínas e ômega 3, que promete uma vida mais saudável para nós. Que saudade das ovelhas carneadas, chego a sonhar com aqueles ossos de costelas assadas no braseiro.

Acho que é por isto que os cachorros daqui tem um olhar triste, parece que estão sempre deprimidos. Dificilmente abanam o rabo, lambem seus amigos ou pulam de alegria. Estes dias fui me engraçar com uma cadelinha bem bonita que estava passeando no calçadão da beira mar. Assim que me aproximei ela foi avisando baixinho, quase sussurrando, que não me excitasse, pois havia sido castrada para evitar problemas para seus donos. Não entrava mais no cio e nem tinha mais apetite sexual. Contou-me que agora está freqüentando uma clinica psiquiátrica anti-stress.

Tião, amigo velho, se isto aqui é o que os humanos chamam de férias, nunca mais quero sair de nosso velho e querido pago. Estes cãezinhos de madame,  aprisionados dentro de casas e apartamentos de luxo, não sabem mais se são cachorros ou humanos. Perderam a identidade. Em algumas situações são considerados animais, em outras são domesticados e em outras, são humanos. É uma confusão que nem cachorros, nem humanos entendem. Para o meu gosto, não são nem uma coisa, nem outra. Nem cachorros, nem humanos. Nem animais, nem domesticados. Nem felizes, nem tristes. Nem mortos de fome, nem bem alimentados. Nem vivos, nem mortos. Viraram uma nova espécie de animal. São os Pets. Coitados.

Contando os dias pra voltar a ser cão.


4 comentários:

  1. Cerceamento de liberdade é uma constante para todos os animais...Somos todos irracionais. Ana

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  2. Adorei o texto. Realmente nos faz pensar nesta nova categoria "pet". Achei as melhores passagens a "luxury pet" e também da "filhinho da mamãe", subestimando a inteligência deles. Demorei um parágrafo para entender que era o cão narrando a história. Se formos pensar por esse lado, estamos fazendo grandes maravilhas para os nossos cachorros, mas no fundo eles estão mais aprisionados. Paula

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  3. Parabéns pelo belo texto. O que fizeram com aquela liberdade do meu cão de ir e vir e de comer o que sua própria vontade animal pede. E que não se fale das gaiolas para os pássaros e de sua vontade de voar, isso me deixa muito triste, e que não se fale dos aquários e do olhar de peixe morto. Aprisionar, humanizar, civilizar....

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  4. Dr.Ildo Meyer. Belo texto da limitada vida deste cachorrinho. Eu tenho um conto sobre um gato. Mas, peço desculpas por estar tomando seu espaço. Atrevi-me porque vi seu site no livro da AJEB, também estou nesse livro. Cheguei a pensar em fazer um comentário "Como identificar alguém especial" Seu texto me passou uma útil lição de vida. abriu-me os olhos, e olha que já vivi bastante.Também descobri que não aprendi a viver creio, que nunca soube fruir, nos meus dias apressados apenas flui. Ivanise Mantovani ivanise9@gmail.com - Respeitosamente.

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