sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Congressos, Jornadas, Simpósios...

Cenas lamentáveis aconteceram durante um congresso médico de âmbito mundial, realizado recentemente em Buenos Aires. O número de congressistas ultrapassou em muito as previsões da comissão organizadora, transformando o que deveria ser uma jornada de atualização científica e congraçamento em uma maratona de reclamações e indignação.

A fila de espera para receber o crachá de inscrição, que permitia o ingresso nas salas de aula, demorava em média quatro horas. Muitos olhavam o tamanho da fila, que chegava a dar voltas no prédio e desistiam. Alguns retornaram no dia seguinte e encontraram a mesma situação. Quase dois dias de congresso perdidos numa fila.

A surpresa maior estava no interior do centro de convenções: salas de aula sempre lotadas. Quando se conseguia entrar em alguma, não havia mais lugares disponíveis. Sentava-se no chão ou ficava-se em pé pelos cantos. Os restantes acotovelavam-se no corredor, tentando escutar através de uma porta semi-aberta. A alternativa para conseguir assistir determinadas palestras era  mais uma vez formar fila na porta das salas, enquanto transcorria a sessão anterior.

O conhecimento médico exige atualização constante. Todos os anos, com este objetivo, alternam-se simpósios, jornadas e congressos em cidades diferentes. As dificuldades para a realização destes eventos são enormes. Os riscos maiores ainda, tanto para congressistas quanto para organizadores,

O trabalho de um congresso precisa começar três a quatro anos antes de sua realização, alugando centros de convenções, reservando rede hoteleira, contratando empresas especializadas, convidando palestrantes. Tudo isto apoiado na imprevisibilidade dos patrocinadores, freqüência de congressistas e desequilíbrios econômicos que possam surgir até a data do evento. Nada pode dar errado.


Visando atrair o maior número de participantes, o programa científico procura contemplar interesses múltiplos, divididos em várias salas com apresentações simultâneas. Tudo é muito corrido, comprimido em três ou quatro dias. O congressista precisa selecionar alguns temas e descartar os demais, conseguindo assistir no máximo trinta a quarenta por cento das atividades propostas.  

Além disto, existem os custos com viagem, estadia e inscrição, sem contar os dias em que se fica ausente do consultório sem perceber honorários. Isto leva muitos profissionais a mesclarem congressos com férias, tentando desta maneira, unir o útil ao agradável. Aproveitam tanto as férias como os congressos pela metade.

Cidades com grande apelo turístico costumam ter maior número de inscritos, o que não significa presença efetiva no congresso. Muitos alternam passeios e praia com aulas, dificultando a previsibilidade de dimensão das salas, que  podem ficar completamente lotadas, ou totalmente vazias. 

As chances de conversar mais demoradamente com colegas de outras cidades são pequenas, e as de falar com aquele professor famoso, praticamente nulas. Imaginem o sentimento do cidadão que atravessou o mundo para chegar até o congresso de Buenos Aires, perdeu dois dias na fila, conseguiu assistir cinco palestras, três destas sentado no chão... Será que voltará no próximo ano?


Apesar de ser um negócio bastante lucrativo, favorecendo turismo, indústria, sociedades médicas, talvez os congressos precisem ser repensados, tanto em sua freqüência como na forma. Uma alternativa podem ser apresentações virtuais, onde conferências, mesas redondas, simpósios e casos clínicos são apresentados via internet e podem ser vistos no horário e velocidade que o assistente desejar.  Um congresso nestes moldes pode durar seis meses, permitindo que médicos se inscrevam a qualquer momento e mesmo assim, assistam ao programa científico na íntegra.

As apresentações podem ser mais longas e o material exposto muito maior. Perguntas respondidas e discutidas via email ou em salas de bate papo virtual. Inscrições gratuitas ou com custo baixíssimo, pois além da redução drástica nas despesas, estas podem ser patrocinadas através de exposições virtuais de produtos e equipamentos. Abolidas as barreiras de tempo e distância, as possibilidades são infinitas.

Ficarão faltando jantares, cafezinho com colegas, bate-papo no centro de exposições, mas isto pode ser feito em um congresso de “carne e osso” a cada dois ou três anos, sem prejuízo do ponto de vista cientifico ou educacional. O importante é não repetir mais o ultrapassado ritual do retorno para casa com um certificado na mão, valido para a revalidação do diploma, e a dolorosa sensação de não ter aproveitado nem o congresso, nem as férias, e muito menos, se atualizado.





2 comentários:

  1. Uma das postagens em Saúde Web que mais me marcou em 2011 foi de Ildo Meyer: Congressos, Jornadas, Simpósios…

    Meyer sugeriu que a educação médica precisa ser repensada: “O importante é não repetir mais o ultrapassado ritual do retorno para casa com um certificado na mão, valido para a revalidação do diploma, e a dolorosa sensação de não ter se atualizado”. Leia mais.

    Trata-se de um assunto que adoro. Meyer trouxe questões passíveis de serem desdobradas em outras tantas, mas a central foi: para que servem nossos Congressos, Jornadas, Simpósios…?

    Já participei da organização de iniciativas de quase todos os tipos: eventos pequenos ou muito grandes, com conteúdos apresentados no formato tradicional ou a partir de educação à distância, com ou sem a indústria farmacêutica e de tecnologias, com poucos recursos ou com recursos sobrando. Hoje sou um defensor ferrenho de educação médica o mais livre possível da influência da indústria.

    Eu não aceito a indústria como 100% vilã. Ideológicos limitados gostam de dividir esta questão entre céu e inferno, ou entre pessoas boas ou más / realistas ou utópicas, quando representam um ou outro ponto de vista. Bobagem! A indústria é fundamental! Gera descobertas, renda, empregos, aumenta a capacidade produtiva… Mas não seria possível e estratégico separar melhor os seus interesses da educação médica continuada especificamente?

    No início da década passada, participei da organização de algumas atividades em parceria com a indústria onde promovemos, direta ou indiretamente, drogas que mais tarde viriam a ser retiradas do mercado ou ter seu uso restringido por efeitos colaterais. Minha desconfiança em relação ao que estávamos fazendo iniciou bem antes das atividades encerrarem, na medida em que surgiam evidências científicas que, mês após mês, “arranhavam” a imagem daqueles produtos. Como era um encontro mensal onde junto da palestra proferida pelo speaker da indústria fazíamos uma discussão de caso clínico envolvendo vários serviços de Medicina Interna da minha região, e como esta segunda atividade era a “menina de meus olhos”, passei a adotar tom questionador após cada aula de conteúdo questionável, mas jamais questionei na instância certa se deveriam ser mantidas ou não. Aquilo tudo acabou por outros motivos, e junto deixaram de existir as instigantes discussões de casos clínicos. Por vezes, até percebemos o conflito de interesse em si, mas reconhecendo (corretamente) que se expor não significa por si só sucumbir ou cometer ato antiético ou imoral, criamos justificativas para aceitá-lo e aumentamos os riscos. A relativização poderia se dar por acreditarmos em um benefício maior para o movimento ou grupo que representamos, por exemplo. Na prática das grandes associações médicas, ocorrem pressões para relativização variadas e por todos os lados.

    Mais tarde, me vi envolvido em situação que serviu de combustível maior para minha postura atual, e confesso que, tomado pelo calor do momento e sem a experiência que tenho hoje, cheguei a me comportar quase como um ideológico burro. “Não precisamos da indústria em hipótese nenhuma”, externei.

    De lá para cá, tenho procurado conhecer cada vez mais o complexo assunto, fortalecendo meu arcabouço teórico, mas principalmente pelo aprendizado prático após diversas tentativas de viabilizar educação médica o mais independente possível.

    Atuei como colaborador da Campanha Alerta, uma iniciativa do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, até final de 2010. Envolvidos com a Campanha estiveram pessoas que nem sempre pensavam igual, o que dificultava a busca por soluções. No entanto, valeu muito o espírito reflexivo e construtivo a partir de uma premissa comum: o problema existe!

    continua

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  2. Concretizei duas experiências marcantes: congressos de grande porte, em hotéis de luxo e com muitos palestrantes internacionais, sem aceitar nenhum tipo de financiamento da indústria de medicamentos. Solução encontrada? Se foi possível perceber que os eventos médicos podem custar muito menos e sem grandes prejuízos, que é possível trazer palestrantes renomados do exterior que não venham através de laboratórios e que a indústria não é tão indispensável para a educação médica assim como dizem, tenho total tranqüilidade de reconhecer: Não, a solução não foi encontrada! Serviram para aprender que não receber diretamente dinheiro da indústria não impede a participação na grade de profissionais fortemente vinculados a ela, e que a qualidade da informação pode, da mesma forma, ser comprometida. Houve também, embora não advindos da indústria de medicamentos, patrocínios condicionados a participação na programação oficial e palestras que pareceram, em minha opinião, mais promoção do que qualquer outra coisa. E eu era o principal organizador dos eventos! Passei a perceber que conflitos de interesse com outros vários stakeholders também são importantes. E que, se não é possível fazer congressos grandes sem nada disto, talvez ainda estejamos atrás do melhor formato para bem regular todas estas relações.

    Tive ainda uma experiência recente com portal de educação médica à distância. Anunciávamos que era independente da indústria, mas o fato é que gravávamos terceiros e que não existiam garantias de que eles não possuíam o tipo de vínculo que optamos não ter. A questão é complexa…

    Tenho convicção de uma coisa apenas: simplesmente evocar a ética para o bom funcionamento das organizações não basta. Que a política sirva de exemplo.

    Debato com pessoas que são absolutamente contra o financiamento público da educação médica no Brasil, adiante da graduação. Haveria duas formas de lidar com isto: os médicos assumirem uma parcela maior do investimento para sua própria educação. Ou incentivar o financiamento privado saudável. Parece-me óbvio que os defensores do financiamento privado devem ser os principais protagonistas na elaboração de políticas de controle e regulação dos conflitos de interesse com o setor, a exemplo da Sociedade Americana de Cirurgia Vascular, que aprovou este ano “the Society for Vascular Surgery Guidelines for Interaction with Companies”. Não necessariamente concordo com todos os pontos, mas é um trabalho admirável. Eu teria orgulho de participar de uma entidade destas, de trabalhar para uma entidade assim. Conheça parte dela agora:
    Estas sociedades médicas estão partindo da premissa de que é melhor prevenir do que remediar. A Sociedade Americana de Medicina Hospitalar recentemente sofreu intenso desgaste por ter que remediar (escândalo, resposta imediata) e tem dado, a partir da lição aprendida, passos interessantes na busca por melhorias. Pena que o conhecimento necessário para agir era o mesmo que o movimento de segurança do paciente já ensinara: “To err is human“…

    Penso hoje que é possível buscar um equilíbrio: sociedades continuarem estabelecendo relações com entes variados, desde que amparadas em políticas de relacionamento verdadeiras e que vão além do “permitimos apenas apoio irrestrito. E confiem em nós”. Problemas irão ocorrer em qualquer formato, pois somos humanos. O importante é um sistema mais do que transparente, que critique, que corrija, que discrimine erro humano de corrupção intencional, e que nos casos dos erros humanos seja mais construtivo. Teríamos assim mais pessoas participando das sociedades médicas. Pessoas como eu, com grande capacidade de trabalho para movimentos em que acredito, mas que não se sentem atraídas a dedicar tempo e energia para projetos muito centrados na crença dos líderes infalíveis. Escrevi mais sobre isto em Por que defendi independência da indústria farmacêutica na minha gestão? Porque eu, Guilherme Barcellos, me considero influenciável.

    Bom natal!

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