domingo, 23 de janeiro de 2022

Não estou só, estou sem

Realizei uma pesquisa com pessoas que perderam familiares durante a pandemia de Covid-19. Com a devida permissão, transcrevo um trecho da entrevista de uma viúva de 55 anos de idade, que num espaço de apenas cinco dias, obteve o diagnóstico, internou e perdeu o marido que tanto amava. Era um profissional autônomo de 60 anos, aparentemente saudável, levemente obeso. Não tinham filhos.

Entrevista realizada três meses após o falecimento. Infelizmente não consigo transcrever as lágrimas que escorreram na tela, mas aconteceram. Não foram poucas. Contagiaram o entrevistador.

- Sente muita solidão depois da perda?

“A questão não é solidão. Tenho amigos, família e até um psicólogo que está me orientando, dando apoio e companhia. Não se trata de estar só, mas de estar sem. Ele não está mais aqui para dividir a vida comigo. Partiu de repente, sem se despedir. Foi triste, esta sendo muito triste.


Talvez tenha sido melhor assim, se houvesse uma despedida seria ainda mais triste. Não nos despedimos, não houve tempo, a morte nos separou. Ele foi embora no melhor da festa, deixou roupas penduradas nos cabides, reuniões agendadas, férias programadas, livros pela metade, promessas por cumprir, beijos por dar, carro na garagem,  celular na gaveta, relógio. Não teve tempo de arrumar as malas, não levou nada, deixou tudo.

A morte chega, mas a vida prevalece. Tive que arrumar suas coisas, mexer nas suas gavetas, pagar suas contas, adivinhar suas senhas e seus segredos. Logo ele, que sempre dizia: das minhas tralhas cuido eu. Cada pedacinho de papel, cada cacareco  que encontro no fundo de uma gaveta, no meio de um livro ou no bolso de alguma calça, me trazem recordações e funcionam como re-encontros e despedidas. Houve momentos perfeitos que passamos e que jamais se perderão. A impossibilidade da sua volta não impede o meu desejo que ele regresse, reapareça, ressuscite.

Às vezes quero por a culpa em alguém. A ordem natural das nossas vidas foi desfeita. Preciso achar um culpado, encontrar um responsável, uma explicação para esta incoerência.  Mas quem? Vírus, governo, ele que não se cuidou direito, alguém que lhe passou a doença, destino, Deus, eu mesma? Às vezes penso que é só um pesadelo, vou acordar e a vida voltará a ser como antes. Às vezes acordo no meio da noite chorando, e começo a conversar com ele, pedindo perdão, implorando por um retorno. Sei que a conversa não é real, mas o sentimento existe e o sentimento é real.

Embora alguns terapeutas considerem luto demorado uma espécie de doença, não há um manual de tratamento. Para algumas pessoas a ficha da perda demora a cair, não tendo o luto data exata para começar, nem sempre iniciando no dia da morte. Mas uma coisa é certa: não tem data para acabar ou prazo de validade. É um processo que deve ser integrado à vida e ir se modificando ao longo do tempo. Toda aquela energia e amor que dedicava ao meu marido ficaram órfãos sem sua presença. Não sei onde colocá-los. Por enquanto guardei-os dentro de mim.  

Continuo trabalhando, vou ao mercado, limpo a casa, preparo o almoço, pago as contas. Tento parecer forte, conviver com a dor, a falta, o desamparo, o pesar, o remorso, a saudade. Nesta pandemia enquanto alguns morrem, outros não vivem. Isto não se chama solidão, o furo é mais embaixo, o ponto de apoio se foi, fui arrastada para fora de nosso centro, sinto-me como um GPS recalculando a rota.”

Minha função nesta pesquisa não era dar apoio espiritual ou realizar agendamentos, no entanto não pude me furtar da responsabilidade de ter tocado em algumas feridas e me sensibilizar com alguns depoimentos. Este artigo é um agradecimento, embora tardio, pelo acolhimento e sinceridade da conversa num momento tão sensível de dor. Não sei por que, mas lembrei da passagem de uma carta de José Saramago para Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado, depois do falecimento deste. Saramago e Jorge eram grandes amigos.

“Um dia destes, Pilar e eu desembarcaremos na rua das Alagoinhas, a visitar Zélia e a família. Sentar-nos-emos debaixo da mangueira, no banco do Jorge, e eu levarei para entreter a espera, A descoberta da América pelos turcos. O livro tem poucas páginas, não vai dar para muito, mas pode-se voltar ao princípio, uma vez e muitas. Se o Jorge tardar, se não vier, será apenas porque se atrasou no caminho, demorou-se a conversar com algum amigo. Esperaremos pacientemente. Não há perigo de que não apareça. Ele está vivo.”

Termino com uma charada. Sabemos que uma árvore caiu pelo barulho que ela faz. Mas, se ninguém ouvir, mesmo assim a árvore caiu? Se não houver testemunhas da queda da árvore, ela ainda está de pé? 

Descanse em paz VF. Ainda estás conosco.

 

 


6 comentários:

  1. Belo texto.
    O que dói é estar sem, não me sinto só.
    Sinto saudade das conversas, das risadas, dos cuidados, do amor, do carinho...tantas e tantas coisas...se pudessem ver minhas lágrimas...assim é a vida escolhas. destinos, fatalidades.

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  2. Sempre lembro de Jorge Amado em meus aniversários, mas isso é outra história. Ao mesmo tempo que minha nora teve o tal do Covid, sua mãe estava hospitalizada e nos deixou aos 60 anos também, em agosto de 2020. Tratar com uma enlutada é algo realmente desgastante se não as conhecemos. Foi muito interessante, pois ela me chamou do consultório com a alta da doença, porém com a notícia de que sua mãe estava em atendindimentos palhativos. Conversamos no trajeto, sobre quais providências poderíamos tomar no contexto do que poderia vir a ocorrer. Neste momento quando a doença estava numa e noutra, algo ocorreu em uma reciprocidade, um choro amorosos, mas um entendimento de que aquele corpo já não suportava mais esta existência. Muitos foram os aprendizados que tivemos, neste momento. Minha nora perdeu a mãe, porém, eu, passei a tratá-la como uma filha... Algumas vezes, podemos dar uma oportunidade ou uma redefinição aos contornos da vida... Mais uma bela reflexão, onde pude perceber que cada ser reage de forma diferente em suas circunstâncias.

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  3. Também perdi meu amor para essa droga de pandemia. Mas, ao contrário da entrevistada, já encontrei um bode expiatório. Não sei se ajudou muito, pois não trouxe meu amado de volta. O jeito é seguir em frente. E como foi dito, neta pandemia alguns morrem, outros não vivem e alguns tentam achar um jeito digno de viver. Estou tentando. Belo texto. Gostei da charada final. Beatriz

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  4. Vai passar e tudo vai voltar ao normal. Mas sem ele.

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  5. “Se o Jorge tardar, se não vier, será apenas porque se atrasou no caminho, demorou-se a conversar com algum amigo. Esperaremos pacientemente. Não há perigo de que não apareça. Ele está vivo.”
    Não há problema em se atrasar, o importante é que venha. Antes tarde que nunca. Antes em sentimento, lembrança ou saudade que nunca. Enquanto nos lembrarmos, estarão vivos.

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  6. Quando amamos, nenhum adeus é eterno.

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