CHEIRO

Não sinto mais teu cheiro. Na verdade, não sinto mais teus cheiros. Eram muitos. Na cama tinhas um cheiro que me deixava entorpecido, começávamos a nos abraçar e o cheiro que emanavas instantaneamente me atraia direto para tua boca. Não conseguia mais me desgrudar. Era uma mistura de suor, feromônio, excitação, desejo, malicia, sedução. Não consigo descrever com palavras, mas era algo surreal, envolvente demais. O cheiro ficava impregnado nos lençóis e dali se espalhava no ar por todo o quarto.

Dormir naquela conjunção de aromas era o paraíso, mas isso não era tudo, a festa ainda não havia acabado. De manhã cedo saias da cama de mansinho e entravas no banho. Não sei por que, mas deixavas a porta entreaberta e por ali começava a entrar outro cheiro, exatamente o antagonista daquele da cama. Também não consigo explicar direito, mas era uma combinação de pureza, frescor, inocência, juventude, perfeição, completude, felicidade. Os dois cheiros se completavam e fechavam um ciclo.

Retornavas para o quarto com uma toalha enrolada unicamente na cabeça. De olhos fechados ficava farejando e me deliciando com cada passo de aproximação. Não precisava enxergar para saber que ali era o meu lugar, meu oásis, meu lar. Era ali que eu queria ficar, só ali.

Fazíamos então uma queda de braço, eu te puxava de volta para a cama, tu me empurravas para fora. Como era gostosa aquela brincadeira, ouso dizer que talvez fosse a melhor parte do ciclo, cada um travando uma batalha interna entre dever e desejo. Perdi a conta de quantas vezes nos atrasamos, mas valeu cada minuto. Quando vencias, sentias-te culpada, ficavas com remorso, mas em seguida já deixavas programada a próxima batalha amorosa.

Agora não sinto mais teu cheiro. A vida está sem graça, sem sabor, sem cor. É como assistir um grenal empatado em zero a zero, comer uma pizza de mussarela fria, viajar sozinho. Perdi a referência, a orientação, talvez tenha perdido até mesmo a pegada. Está difícil. Por enquanto, preciso aprender a seguir sem teu cheiro.

O Covid me tirou o olfato, não tirou meu amor.  Não consigo mais sentir teu cheiro, mas te sinto a meu lado. Teu perfume está vivo na minha memória, tu estás na cama comigo e Deus está conosco. Peço-te só um pouco de paciência. O vírus daqui a pouco vai embora e teu cheiro logo vai voltar a nos perfumar.