Esta semana perdi mais uma amiga para a Covid. Cuidava-se bastante até que num maldito dia se contaminou. Começou com tosse, febre e em seguida falta de ar. Precisou ser internada na UTI e logo em seguida entubada. A partir daí, o único contato que a família conseguia era uma curta mensagem diária do médico plantonista às 16 horas onde comunicava a evolução do quadro clínico.
Durante trinta e dois dias mensagens técnicas dizendo que a febre havia baixado, os rins não estavam funcionando direito, a oxigenação havia piorado, contraíra uma pneumonia, até o fatídico dia em que comunicaram que não resistiu e partiu para uma outra existência. Morte solitária, cruel, patética, num penoso e frigido leito hospitalar.
Trinta e cinco dias antes dessa tragédia, conversávamos ao telefone, trocávamos mensagens, fazíamos planos para o término da pandemia. Agora ela não está mais aqui, virou cinzas. E nem conseguimos nos despedir. Não lhe foi permitido dizer adeus. Não me foi concedido um último abraço. Senti como se inesperadamente tivessem me arrancado um pedaço, um braço, uma perna, uma orelha, uma parte do coração. Não foi só ela quem morreu, uma porção de mim partiu junto com ela.
Não só com pessoas acontecem essas doenças terminais, alguns relacionamentos patológicos também acabam na UTI, permanecem em coma afetivo sem comunicação durante anos, sustentados pela ilusão de uma ressuscitação, até que num bem ou mal aventurado dia se desligam. Com ou sem sofrimento, velório ou missa de sétimo dia. Essas mortes simbólicas podem ser mais difíceis de lidar que a morte real. Na morte real não há dúvida, na simbólica ainda há algo vivo.
Já morri várias vezes desde que nasci. Tive perdas muito dolorosas, físicas e simbólicas, em cada uma delas um pouco de mim também se perdeu. Perdi juventude, dinheiro, paixões, casamento, pai, avós, amigos, trabalhos, sonhos, ilusões. O conceito de morte está para muito além de deixar de viver ou respirar. Pode ser encarado também como perda de possibilidades, quaisquer que sejam elas.
Minha amiga morreu, mas continua sendo minha amiga. O amor que tinha por ela não morreu. A morte só diz respeito ao corpo físico e a um futuro compartilhado da relação. Haverá momentos tristes em que pensarei nela, sentirei sua falta e derramarei algumas lágrimas. Haverá outros momentos nos quais sentirei sua alma me tocar e voltaremos a dar boas gargalhadas.
O luto é o preço do amor. Se amou de verdade, vai sofrer. Não tem como evitar. Quanto maior o amor, maior a dor da perda. A única forma de não sofrer é não amar, mas isso também não é viver. O luto serve como uma metamorfose, onde se aprende a andar novamente sem aquele que partiu. É um desafio a ser vivenciado. Lidar com o imponderável, intangível, lembrar e honrar a experiência vivida e carregar consigo o melhor de tudo que fizeram. A morte leva, mas sempre deixa algo. A flor murchou, mas na hora da despedida, mais importante que o buquê, é a memória do perfume.
Agora bola pra frente. Ficar revoltado não irá fazê-la reviver, tampouco aliviará minha dor. Se daqui em diante conseguir viver plenamente cada instante, quando chegar a hora H, a morte pode vir, mas não vai conseguir matar o amor. Aproveitamos, vibramos, perdoamos, causamos, surpreendemos, fizemos, transgredimos, falamos, escutamos, abraçamos, beijamos, transformamos, agradecemos. Momentos extraordinários, inesquecíveis, eternos, imortais. Como diria Roberto Carlos: se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi.
Depois que ela partiu confesso que fiquei um pouco perdido, mas tenho um compromisso com a vida. Serei feliz sem ela. Serei feliz por ela.
Só tem medo do fim quem não aproveitou intensamente o meio.
Artigo escrito em homenagem aos 80 anos de Roberto Carlos, inspirado em citações de Ana Claudia Arantes e Fabricio Carpinejar
Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito tempo em sua vida
Eu vou viver
Detalhes tão pequenos de nós dois
São coisas muito grandes pra esquecer
E a toda hora vão estar presentes
Você vai ver
Se um outro cabeludo aparecer
Na sua rua
E isto lhe trouxer saudades minhas
A culpa é sua
O ronco barulhento do seu carro
A velha calça desbotada ou coisa assim
Imediatamente você vai lembrar de mim
Eu sei que um outro deve estar falando
Ao seu ouvido
Palavras de amor como eu falei
Mas eu duvido
Duvido que ele tenha tanto amor
E até o erros do meu português ruim
E nessa hora você vai, lembrar de mim
À noite, envolvida no silêncio do seu quarto
Antes de dormir você procura o meu retrato
Mas da moldura não sou eu quem lhe sorri
Mas você vê o meu sorriso mesmo assim
E tudo isto vai fazer você lembrar de mim
Se alguém tocar seu corpo como eu
Não diga nada
Não vá dizer seu nome, sem querer
À pessoa errada
Pensando ter amor nesse momento
Desesperada você tenta até o fim
Mas até nesse momento, você vai
Você vai lembrar de mim
Eu sei que esses detalhes vão sumir
Na longa estrada
Do tempo que transforma todo amor
Em quase nada
Mas quase também é mais um detalhe
Um grande amor não vai morrer assim
Por isso é que de vez em quando você vai
Você vai lembrar de mim
Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito muito tempo em sua vida
Eu vou viver
Não adianta nem tentar
Meu profundo sentimento. Realmente existem pessoa que passam por nossas vidas e calam profundas marcas, mesmo que não tenham promovido uma convivência maior. O simples fato de saber que ela exista, poderá para alguns, repriduzir um grande e inevitável conforto. As lembranças poderão com o tempo se apagar ou não, com diz o poeta. Isso vai depender de quem, e forma a ser transportada. Ela poderá ser um veículo, um avenida, uma rua ou apenas aquele recanto bucólica que nos permite deslocamentos longos, aqueles que nutrem nossas almas e nos garantem um alento.
ResponderExcluirMeus sinceros sentimentos! Pela amiga que partiu ou pelo amor acabado. Eu mesma, já deixei vários amores na UTI. Pobres almas seguiram me amando por anos, desacordados, amando. Eu amando outros.
ResponderExcluirEstou na UTI do Amor. Abestada em recuperação ou indo para a morte. Show o texto.
ExcluirIldo querido, ao invés de morrer um pouquinho de ti com ela, deixa um pouquinho dela viva em ti. Marli
ResponderExcluirUm cheiro, uma música, um lugar, uma comida, uma palavra, uma roupa...muitas formas de se manter viva.
ExcluirQuerido Ildo, lindo texto. Percebi o encerramento do relacionamento afetivo, deixaste na UTI e o destino levou. Que sigas teu caminho e ela o dela. Linda metáfora. Uma maneira gentil de afirmar as boas lembranças que ficaram. Se bem conheço os homens já deves ter uma paixão!
ResponderExcluirDurante a pandemia me separei. O amor pelo meu marido já estava há meses na UTI, fiz varias investimentos. Não recuperou. Também vivo o luto da separação. Ildo, eu te entendo!
ResponderExcluirO bom é que ninguém morre de verdade, não quero mal dele.
Suzana
Muito bacana e real o texto.
ResponderExcluir"alguns relacionamentos patológicos também acabam na UTI, permanecem em coma afetivo sem comunicação durante anos, sustentados pela ilusão de uma ressuscitação, até que num bem ou mal aventurado dia se desligam." Concordo de olhos fechados! Vivo essa situação.
Existem os finais felizes e os finais necessários.
ResponderExcluirUma única morte me choca. Um milhão de mortes é uma estatística. Flavia
ResponderExcluirEstamos em uma época onde a morte está ensinando as pessoas as coisas sobre a vida.
ExcluirA parte ruim disto tudo é que quando um fica na UTI hospitalar, os outros ficam se culpando que não fizeram tudo que podiam, não disseram tudo que que queriam falar, ao passo que quando o casal está na UTI sentimental, não fazem isso. Covardemente silenciam e deixam morrer a relação. Espero que possam aprender e se tratar enquanto é tempo.
ResponderExcluirAssino embaixo
ExcluirE se o Amor não renascer, entender que acabou.
ExcluirNão tenho bola de cristal, mas sempre fui muito boa em interpretação de textos. Consigo ler nas entrelinhas. Ildo perdeu fisicamente uma amiga e perdeu também um amor. Se eram a mesma pessoa, não ficou claro no texto. Está é a malandragem do escritor. Aguçar nossa curiosidade, estimular nossa imaginação. Parabéns pelo texto, meus sentimentos pelas perdas. #veradobar
ResponderExcluirOnde atendes Veradobar? Tb senti que o Ildo encerrou um ciclo de amor com luto. Força Ildo o final é sempre um novo começo.
ExcluirIldou encerrou um relacionamento e transformou em um belo texto. Uma forma de elaborar o luto.
ExcluirTodos caminhos levam à morte - melhor se perder.
ResponderExcluirTodos caminhos levam ao amor - melhor achar um guia.
Lu
O que eu não entendi no texto foi porque o Ildo homenageou o Roberto Carlos. O texto é uma homenagem de despedida ao amor que se foi. Como disseram em comentários anteriores, uma bela forma de elaborar o luto. Nada a ver com RC.
ResponderExcluirEla é fã do REI, o romance foi curtido ao som dele. Tudo fica escondido no texto.
ExcluirAcho que tem algo mais escondido no texto. Ajuda aí veradobar!
ExcluirO Ildo é um escritor que abre o coração nos textos. Fico triste pelo encerramento deste ciclo em sua vida. As muitas formas da morte.
ResponderExcluirDecidi desligar os aparelhos que mantinham nosso amor vivo.
ResponderExcluirNada dói mais que um adeus agonizando, implorando para ser dito
Ninguém morre de uma só vez.
ResponderExcluirDebaixo da terra ficam apenas as frações que suportaram até o final
O bom do Amor na UTI é que vou desligando aos poucos. Vou me transformando, mudando até que saio do leito da UTI sem olhar para trás. Acabou.
ResponderExcluirCada vez mais entendo como é importante sair da UTI. Não vale a pena tentar reanimar. Morreu. Sequei a última lágrima a pouco.
ExcluirFaz assim
ResponderExcluirPrimeiro lugar você some
Segundo lugar virá homem
Você me perdeu
Marília Mendonça
No artigo imediatamente anterior a este, Ildo já deu dicas de que a comunicação do casal não andava bem, mensagens telefônicas não eram respondidas. É só prestar atenção. Está tudo nas entrelinhas.
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