terça-feira, 17 de novembro de 2020

As bolsas e a vida


Suponha que algum laboratório multinacional oferecesse uma pílula revolucionária que lhe daria trinta anos de vida extra, excelentes condições de saúde e nenhum efeito colateral. Você aceitaria imediatamente ou precisaria de algum tempo para refletir sobre este bônus de eternidade? Por que escolheram justamente você para ganhar este presente?  Seus familiares também teriam este direito? Exigiriam algo em troca? O que você faria com estes trinta anos adicionais?

Já que estamos em plena pandemia, temendo a contaminação, a doença e a morte, quem sabe seja o momento adequado para algumas considerações sobre a vida e seu término, afinal, a ameaça de morte pode ser uma boa conselheira, mostrando o contraste com a vida e o que realmente importa para cada um de nós. Quem sabe o medo da morte prove, por fim, ser até  pior que a própria morte. Morrer não é difícil, viver é que é difícil, e tudo o que sabemos até hoje sobre a morte é o que percebemos nos outros, já que não pode ser experimentado em nós mesmos.


Não sei quem inventou a figura dramática de que a morte é um esqueleto embrulhado em um lençol branco, carrega sempre uma enorme gadanha consigo, não responde perguntas, aparece quando menos se espera e leva as pessoas embora para sempre.  Não é bem assim, mas este fantasma ainda assusta crianças e adultos.

Existe outra versão sobre o assunto, universalmente mais aceitável: morte seria o contrário da vida. Só que não. Vida e morte não são contrárias. Nascimento e morte são dois polos de uma mesma jornada chamada vida. Na verdade, a vida se inicia com a concepção, mas para esta nossa conversa, por motivos didáticos, vamos considerar o nascimento como o inicio da vida. Não vai alterar o raciocínio. Explicando melhor, depois que um óvulo é fecundado, nascemos, vivemos e um dia morreremos. A morte é um processo de saída, assim como o nascimento é um processo de entrada. Nascimento é o inicio, morte o final, a vida são possibilidades. Vida é um etecétera e tal.

Podemos considerar nascimento e morte como opostos. Por sua vez, vida não tem oposto. Penso que talvez o oposto de viver possa ser não viver, assim como o oposto de amar talvez seja não amar. Cabe aqui a pergunta, estamos falando de qual vida, biológica ou biográfica? Vida material ou espiritual? Viver ou existir? Ter consciência da vida ou viver sem consciência?

Pior que a morte, talvez seja morrer em vida, ou ainda, ser enterrado vivo pelos outros.  Dias, meses, anos transcorrendo no piloto automático, escorrendo pelos dedos de forma fria, indiferente e miserável. Alma coabitando o corpo vazia de qualquer sentimento, nada mais dói, nenhum plano, sonhos zero, desejos inexistentes, ausência de amor próprio e pelo próximo.  Buraco enorme no peito.

A pessoa não evolui patavina, mesmo corte de cabelo da adolescência, mesmas roupas, pouquíssimos relacionamentos, jamais corre riscos, “vive” com medo, se protegendo eternamente da morte, até que, por fatalidade, ironia ou castigo,  se depara com seu destino exatamente no caminho que tomou para evitá-lo. Será que esta pessoa vive mesmo? Existem mil maneiras de viver sem honrar a vida. O que ela faria com os trinta anos adicionais da pílula revolucionária?

Agora suponha que para receber a pílula, você tenha que enviar um currículo para a empresa, mostrando como foi sua vida até agora e os planos para os próximos trinta anos. Você não tem a menor ideia de quais serão os critérios de escolha, tampouco quem serão os jurados. Você se candidataria? O que escreveria?

Tenha cuidado antes de preencher o questionário, pense bem, seu futuro está em jogo. Razão e emoção não costumam andar de mãos dadas com a morte.  O que o faz sentir vivo? O que faz pela vida do outro? Conseguiu transcender o interesse em si e enxergar além de seu próprio umbigo? Sua vida é motivo de orgulho? Vale a pena levantar da cama todo dia? Para que precisa de mais trinta anos de vida?

Atenção, respostas do tipo “queria ter mais tempo para abraçar meus amigos”, “queria ter mais tempo para aproveitar a vida”, serão desclassificadas e devolvidas com o carimbo padrão “Por que não fez isto até hoje”?

Vale ainda lembrar um velho ditado ídishe: “o homem planeja e Deus ri”. Desde sempre os homens tentaram driblar a morte, mas ela também sabe jogar bola, e não joga pra perder. A morte é uma dívida que todos vamos ter que pagar. João foi aprovado no concurso, tomou a pílula, ganhou trinta anos de saúde excelente, mas infelizmente um piano caiu em sua cabeça e João morreu. Pedro também tomou a pílula, mas nenhum de seus próximos foi contemplado. Aos poucos foi perdendo esposa, filhos, amigos, caiu em depressão e se suicidou. Pílula, vacina, isolamento, cuidados extremos não são garantia de eternidade.

Um dia a vida perguntou à morte: - Por que todo mundo me ama e te odeia?

A morte respondeu: - Porque você é uma linda mentira e eu sou uma dolorosa verdade.

Quer merecer estar vivo e viver dignamente? Caminha com duas bolsas, uma para dar, outra para receber.


Trilha sonora para este artigo: https://youtu.be/u8w9R7HE28Q

 

 

17 comentários:

  1. Excelente! Prefiro não tomar a pílula e seguir a vida.
    Acredito que ninguém dribla o destino e quando minhas amigas dizem cuidado com que falas: Você profetiza!
    Profetizo sim...simplesmente sinto.
    Quero viver bem o tempo que Deus permitir. Nada de pílulas.
    Parabéns Dr Ildo, adorei!

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  2. Caminhando com alguns amigos na UCS, em 2019,uma amiga contou que certa vez um aluno assistindo a sua aula de ciência, onde falavam sobre o ser vivo (nasce, cresce, reproduz e morre). O aluno refletiu e afirmou: " Então eu não ser vivo? Eu só nasci e cresci. Eu não procriei e nem morri". Rimos muito, estávamos todos vivos... Meu avô faleceu faltando um mês para completar seus 99 anos. Viveu seus últimos anos com as filhas e netos que menos conviveram com ele ao longo de sua vida. Seus amigos e familiares já não existiam. Um homem ativo e cheio de valores. Penso que a vida é um presente, e que podemos até sonhar, mesmo que nada se concretize. CONTINUO NA CAMINHADA, COM SONHOS POR REALIZAR. Nada é impossível, para muitos que acreditam que haverá um novo dia, uma nova oportunidade...

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  3. Sigo sem a pílula.
    Genial.

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  4. Tudo tem a sua hora certa e todos nós temos um chamado já escrito por Deus.
    Com ou sem pílulas mágicas

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  5. Interessante pílulas para viver mais, e a morte fica olhando! Você cheio de entusiasmo 30 anos vivo e conservado. Doce ilusão, ela dá um jeito de te pegar.
    A fonte da juventude, a vida eterna ...mitologia e lendas se misturam. Quer ser jovem? Descubra o segredo e aproveite.
    Eu não conto!

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  6. Estive a pensar se pudesse tomar uma pílula mágica gostaria de mudar um segundo da minha vida (uma decisão), sem dúvida seria uma cascata de mudanças na minha e em outras vidas, não tenho o dom da escrita mas, daria um livro.

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  7. A pílula revolucionária existe, mas não em forma de pílula. A chave da longevidade está na boca: cuidar do que se come e bebe.

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  8. Parece que foi Woody Allen quem disse que não sabia se havia vida após a morte, mas também desconfiava que para muitos não havia vida antes da morte.

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  9. Pilula mágica foi a anticoncepcional, só que não foi para viver 30 anos a mais. Talvez tenha sido, já que antes as mulheres tinham um filho atrás do outro e não conseguiam viver, agora podem ter a opção de escolha. Não tomaria nenhuma das duas.

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  10. Dr Ildo, pare de falar tanto em pandemia, Covid, morte e volte a escrever aqueles artigos falando de vida, de amor, felicidade. Faz muito bem ler seus artigos bem humorados e instrutivos. Deixe a Covid se enterrar sozinha. Esqueça dela. Mas continua escrevendo e se cuidando.

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    1. Também já estou com saudades desses artigos.
      Claudia

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    2. Como esquecer o Covid...atencao todo o cuidado é pouco.
      Ele está vindo mais Forte e talvez não tenhamos mais vida para ler.
      Os textos nos trazem a realidade, ele não foi embora.

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    3. O importante é continuar escrevendo

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    4. Amor...escreva sobre o Amor nem que for o Amor de Faxada, igual a música.
      Você não merece esse amor de faxada
      Esse moleque aí não quer nada com nada
      Você é tão linda mais ele e tão mala
      Cancela esse cara
      Cancela esse cara.

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  11. Gostei da trilha sonora também. Mercedes Sosa era show de bola. Muito bom honrar a vida que recebemos. Fran

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  12. Só tem medo do fim quem não aproveitou o meio. Entre tomar uma pílula pra viver mais trinta anos na mediocridade ou viver as trinta horas de um dia plenas, prefiro ir vivendo intensamente cada dia. Talvez o caminho pra se viver trinta anos a mais não seja a pílula, seja gostar da vida e fazer por merecer. Não acredite em pílula, acredite em você. Pastor Cléber Mendes.

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