quarta-feira, 1 de julho de 2020

Quarentena e Depressão


Você está distraidamente caminhando pela rua, infelizmente tropeça numa pedra, cai e torce o pé. Está doendo muito.  O que você instintivamente faz? Procura não pisar no chão para não doer mais e não aumentar a machucadura. Quando está com dor de dente, basicamente repete o mesmo procedimento: procura não mastigar daquele lado pra não acentuar a dor. Quando está com cólicas, se encolhe num canto, não se mexe, mal respira e espera a dor passar.  E quando está com dor na alma, o que você faz?


A maioria das pessoas não sabe o que fazer, então se encolhem.  Deixam de fazer as tarefas do trabalho e da casa, gradualmente abandonam o convívio com familiares e amigos, tornam-se pessoas quietas, caladas, sonolentas, desanimadas, catatônicas. Preferem não frequentar o ambiente que lhes é danoso e prejudicial, visto que sofrem menos quando se afastam dos afetos. Acreditam que construir um muro em torno do sofrimento será protetor, parecido com não mastigar no lado que está doendo ao invés de procurar o dentista para tratar.

Não vão faltar amigos pra dizer “te anima”, coloca uma roupa legal, escuta uma música revigorante e volta a ser aquela pessoa que sempre fostes. Alguns recomendarão tratamento antidepressivo pra acelerar a cura e resolução dos problemas. Esquecem que antes de curar alguém, é preciso saber se a pessoa está disposta a desistir das coisas que a fizeram adoecer, pois é muito difícil se curar no mesmo ambiente em que ficou doente.

De nada adianta a pessoa retornar ao trabalho ou ao casamento destroçado entupido de antidepressivos. A doença continua lá. É preciso tratar a causa do sofrimento e não o sintoma. Fazer isso é como injetar anestésico na gengiva pra poder ir num jantar festivo e mastigar com o dente supurado.

A depressão é o último estágio da dor da alma. O deprimido não escolhe o seu estado, ele é arrastado por um desânimo químico e psicológico para um isolamento. Só que este isolamento é implacável, impiedoso e cruel, pois ao mesmo tempo em que lhe alivia a dor, o impede de se libertar.  O deprimido é como um animal selvagem enjaulado, preso por si mesmo e que jamais se inquieta internamente.

Semelhantemente, fomos arrastados para uma quarentena obrigatória, ameaçados com risco de perder a vida. Privaram-nos do convívio com familiares e amigos. Sonhos foram interrompidos ou adiados. Infestaram-nos com fake news e o temor de um vírus desconhecido. Governantes, imprensa, cientistas, indústria farmacêutica confundem nossas cabeças com pesquisas, depoimentos e condutas controversas, inconstantes e sem consenso.

A luz no fim do túnel ainda está muito distante. Embora alguns estejam fazendo de conta que o perigo não existe desfrutando de férias em casas luxuosas ou fazendo festas clandestinas, de um modo ou de outro, estamos todos numa reclusão implacável e cruel, tão ou pior enjaulados quanto o deprimido, visto que fomos coagidos vigorosamente para tal. A diferença é que o deprimido, em seu cárcere mental, fica em silêncio, ruminando pensamentos, enquanto muitos de nós, em nossas prisões domiciliares, assistimos noticiários, filmes, lives, fazemos quebra-cabeças, comemos, bebemos, dormimos e não sobra, ou não queremos, achar tempo para pensar em nossas vidas e nas dos outros.

É natural e até mesmo saudável que algum grau de perplexidade, tristeza, ansiedade e medo nos atinjam e imponham certa reflexão. O que esperar de nós e do mundo quando a vida voltar ao normal? Em primeiro lugar, a vida não vai voltar ao normal. Nem deve, pois a normalidade que vivíamos  é que era exatamente o problema. Se tudo voltar a ser exatamente como antes, voltaremos ao ambiente que nos fez adoecer, e não é sadio voltarmos a nos adaptar a uma sociedade doente.

Um dia, num futuro ainda incerto, vamos recuperar nossas liberdades e mais uma vez poderemos vagar pelo mundo. Por enquanto, teremos que conviver com o pouco de autonomia que nos é concedida e aprender a apreciar e valorizá-la.  Muitos dos maiores filósofos da humanidade passaram uma quantidade gigantesca de tempo sozinhos em seus quartos. O silêncio lhes deu oportunidade de admirar grande parte do que geralmente era visto sem nunca ser percebido ou vivenciado adequadamente.

O vírus veio para nos mostrar aquilo que não conseguíamos enxergar: desacelerar, diminuir o consumo, sermos mais cuidadosos com o planeta, com os outros e com nós mesmos. Transformações estimuladas pelo medo não costumam ser prósperas ou permanentes. Torço para que esta quarentena não seja em vão.  Quando acabar esta pandemia, espero que as pessoas e o mundo estejam diferentes, se abracem mais, beijem mais, toquem mais, sintam mais.  Infelizmente não vai durar muito. Suprida a carência, a vontade de abraçar vai passar. Uma pena, mas a boa noticia é que o vírus também vai passar.





16 comentários:

  1. Dr Ildo
    Parabéns pelo texto!
    Eu sei que minha vontade de abraçar e afofar quem eu gosto vai continuar a mesma antes e depois da quarentena.
    Acreditando que tudo vai passar logo...
    Abraços

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  2. "Mesmo nossa própria dor não é tão pesada como a dor consentida com outro, pelo outro, no lugar do outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos"
    MILAN KUNDERA - A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER

    Fazer o que? A caminha nos remete a vida!

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  3. Quanto a vocês? Não sei! Eu sei que não serei mais a mesma.
    Vou amar quem me ama, não quero migalhas, quero AMOR!
    Quero vida, quero liberdade, decidi ser FELIZ!
    E vou SER!

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  4. Estou deprimida, tenho 60 anos e as noticias me torturam, corro o risco iminente de morte. Vocês já pararam para pensar como está a cabeça dos idosos após ouvirem diariamente que eles são as maiores vítimas da COVID-19?

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  5. O novo normal agora é depressão. Em maior ou menor grau. Quem não estiver um tiquinho deprimido está doente.

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    1. A depressão se manifesta de diferentes formas. O humor é uma delas. Uma boa gargalhada pode mascarar um enorme vazio na alma.

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    2. Bem assim...a pessoa tenta se enganar que está tudo bem e a vida está uma porcaria. E vai levando...fingindo... espero que a quarentena acerte a vida de cada um.

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  6. Existem remédios para o corpo e remédios para a alma. O beijo e o abraço são remédios para o corpo e para a alma, mas como todo remédio, tem um monte de efeitos colaterais. É preciso ter cuidado.

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  7. Não entendo como alguém pode estar bem na pandemia. No mínimo uma surtada!

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  8. O que muitos pensam ser depressão, pode ser apenas o resultado da enorme distância entre expectativa e realidade.

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  9. Quando sinto que estou ficando pra baixo, vou no shopping, olho as vitrines, faço algumas compras, tomo um milk shake de morango e volto renovada. Agora com o shopping fechado tive que inventar outro remédio. Faço compras pela internet. Não é a mesma coisa, gosto de ver gente, falar com as vendedoras, experimentar as roupas. Logo, logo, vai passar. e quando passar, vou fazer um estrago no bolso.

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  10. Eu preciso sentir a liberdade de poder sair!
    Ir ao super com calma, conversar com as amigas, abraçar e beijar quem gosto sem medo!
    Viver!

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  11. Minha vida vai mudar quando sair da reclusão. Hoje sei exatamente o que não quero e confesso que para chegar a esta conclusão tive momentos depressivos. A mudança já começou e vai finalizar no dia que eu me sentir livre novamente.

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  12. Quase 100 dias em casa tempo para limpar, arrumar , surtar e me analisar. Sim, aprendi a fazer a análise em mim! Não pago mais terapia. Fiz terapia de choque. Uma limpa no face, Instagram e Facebook com direito a bloqueios. Quem não me fez o bem ou ao menos se preocupou comigo foi eliminado.
    Se o tal corona ou algum coroa tentar me adicionar bloqueio.

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  13. Reprodução de comentário do artigo "FESTAS DE FINAL DE ANO - RISOS E LÁGRIMAS":

    Pouco me lembro de 2009. Mas gostaria de reescrever 2020. Poderia enumerar vários tópicos do que escrevestes, neste fadado ano de 2020. Dos Sonhos que deixei de realizar, mas aí me lembro dos jovens que foram impedidos de ir a escola. Dos amigos que não reencontrei, mas aí me lembro dos que partiram sem se despedir... Porém tenho esperanças nos dias vindouros, renovar meus propósitos de vida. Feliz daquele, que há tempo anda por este mundo e consegue retomar a caminhada, e com ela, seus propósitos sem abalarem sua essência de vida.

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