quarta-feira, 15 de abril de 2020

Queremos viver


Querida Anne

Como estão as coisas por ai? Tempos difíceis, não é? Escrevo em formato de carta porque agora, durante a quarentena, tenho tempo de sobra pra conversar, então resolvi voltar aos velhos tempos, aqueles onde éramos felizes e não sabíamos. Só que estou tão acostumado a mandar mensagens por whatsapp que talvez me atrapalhe e cometa alguns erros de português. Queria te contar algumas experiências de meu isolamento social.

Desde criança tinha o sonho de ficar uma semana trancado dentro de uma grande livraria. Preciso ter mais cuidado com meus pensamentos, eles podem se transformar em realidade. Meu pedido foi atendido e veio maior que imaginava. Ganhei um mês trancado no conforto do lar, cinquenta mil livros disponibilizados pela Amazon e todo o acervo de filmes do Netflix. Tirei a sorte grande.

O que não estava planejado no meu sonho era quem faria a comida, quem limparia a casa, quem lavaria a louça. Estou tendo que me virar, mas os livros e tutoriais existem pra isto. Aos trancos e barrancos vou dando conta. Também já tenho outro sonho: uma faxineira assim que possível.


Assisti a um filme interessante, realizado em 1959, mas que tem tudo a ver com o que estamos vivendo hoje. O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. Depois de dez anos combatendo nas Cruzadas, um cavaleiro retorna e encontra seu país devastado pela Peste Negra. A miséria e a morte andam lado a lado. Enquanto reflete sobre sua fé em Deus e o significado da vida, a Morte surge à sua frente e quer levá-lo. Desesperado, objetivando ganhar tempo, convida-a para um jogo de xadrez. Se ganhasse permaneceria vivo, perdendo partiria com ela. A Morte aceita o desafio, visto que não perde nunca.

Não vou contar o fim do filme, mas imaginei um diálogo entre os dois, adaptado para o Covid-19. Seria mais ou menos assim:

Cavaleiro numa voz arrogante: - Por que você quer me levar?  Sou jovem, não sou grupo de risco.

Morte com voz impávida e fria: - Não é este o critério para deixar alguém viver.

- Tenho saúde, pratico exercícios, me alimento bem, não tenho vícios.

- Não é este o critério.

- Creio em Deus, frequento a igreja, faço doações, pratico o bem.

- Também não é este o critério.

- Tenho família e filhos para criar.

- Mais uma vez, não é este o critério para lhe deixar aqui.

Cavaleiro, agora com a voz tremula: - Por que eu?  Por favor, diga-me o que preciso fazer para me salvar.

Podemos encarar esta pandemia de duas maneiras: surgiu para matar indiscriminadamente  ou está acontecendo para abrir nossos olhos, mostrar algo que não estamos conseguindo enxergar?

Não há um critério absoluto, mas se houvesse uma razão pela qual alguém deveria morrer, quem sabe poderia ser a inveja? Talvez  o ódio? Poderia ser a mentira, o egoísmo ou até mesmo a incapacidade de perdoar? Tenho pensado nisso.

Por qual motivo mereceríamos ser salvos? Por que desejamos tanto continuar vivendo? Temos um propósito, um sentido para nossas vidas? Possuímos méritos para continuar nesta existência? Não tenho certeza.

Ouço relatos de filhos que deixaram mães viúvas ou separadas sozinhas e foram ficar com as namoradas durante a quarentena. Há maridos que deixaram esposas cuidando dos filhos em casa e foram cuidar dos pais idosos durante o isolamento. Casais voltaram a se apaixonar sob o mesmo teto enquanto outros passaram a se odiar de morte. Marido largou a amante e voltou para a casa da ex-mulher. Amigos convidando amigos para dividir o apartamento e compartilhar a solidão. Médicos e enfermeiros não podendo voltar para casa sob risco de contaminar a família. Namoros que terminaram com a distância, pois o que segurava a relação era o contato físico. Pais separados brigando para ver quem fica trancado com os filhos sem escola.  A dança das cadeiras aconteceu sem avisar. A maioria das pessoas simplesmente se trancou em casa com a família, mas nem todos. Alguns escolheram onde e com quem iriam se recolher.

Medo, insegurança, fragilidade. Quem sou eu para julgar o que é certo ou errado nas escolhas individuais? O que sei é que há algo comum em todos os casos. Fomos preparados pra viver da porta de nossa casa para fora, para o lado da rua, da escola, do trabalho, do clube. Não fomos treinados para ficar dentro de casa, convivendo com as mesmas pessoas, dia e noite, sem perspectiva de alforria. E pra piorar mais ainda nossa privação de liberdade,  somos  ameaçados de ser atacados por um vírus mortal se fugirmos desta prisão domiciliar.

Fomos submetidos, na marra, de surpresa, sem manual de procedimentos, a coabitar com nossos pares. Poucos, nos quais me incluo, escolheram ou foram obrigados a “quarentenar” sozinhos. Vantagens, desvantagens, arrependimentos, ansiedade, depressão. Estamos pagando um preço muito elevado por nossa cegueira, mas sobreviveremos. Tomara que física e espiritualmente.

Pôxa, como é bom escrever com calma e deixar os pensamentos virarem palavras. Mais uma coisa que estou reaprendendo. Bom, preciso preparar o jantar. Amanha continuamos.

PS – Escrevi “amigos compartilhando a solidão”. Existe isso? Acho que não.  Quando você compartilha com alguém, a solidão vai embora.  Compartilhar talvez seja o remédio pra solidão.

PS2 – Quando tudo isto terminar, você vai ganhar o melhor e o mais demorado abraço de nossas vidas. Muita saudade.

18 comentários:

  1. A carta foi dirigida para Anne, em homenagem à menininha protagonista da série que está bombando no Netflix "Anne with an e", mas poderia ser escrita para você. Se quiser, responda. Vou gostar de ler. Afinal, tempo temos de sobra.

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  2. Dr.Ildo Sem dúvida o melhor artigo que já li! Meus parabéns. Adorei. Estou na espera pelo mais apertado e delicioso abraço do mundo! abraços

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  3. Agora, com mais saudades! Temos que olhar para além de nossas janelas existenciais. Saber que fazemos partes delas, sim, do bem querer. Querer ser e estar além do possível... A MATÉRIA, pode estar isolada, mas alma pode estar interligada com seres que lhe transmitam forças, nestes dias tão caseiros. Estamos todos a navegar em mares possíveis de turbulências, mas a calmaria já vem na sua sequência... Continue a escrever pois dessa SEMIOSE e SINONÍMIA, você transita com maestria.

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  4. Em Algum Lugar 15/04/2020

    Querido Amigo

    Que surpresa agradável abrir minha caixa do correio e em meio aos meus boletos encontrar uma carta.
    Confesso: quando vi o remetente...arrepiei!
    Muito tempo sem notícias suas!
    Não tive dúvida, abri uma caixa e escolhi um lindo papel de carta (do tempo em que colecionava), com direito ao envelope combinando. Lembra?
    Em tempo de quarentena encontro tudo facilmente, já fiz várias arrumações na casa. Tudo em ordem.
    Éramos felizes e sabíamos, mas não valorizávamos.
    Continuo adorando longas conversas, histórias antes de dormir, risadas....eu nunca tenho sono!
    Estive a pensar como convenceria o nobre cavaleiro a não me escolher: não terminei minha missão! Muitos planos, muitos sonhos, filhos para criar, um amor para cuidar e ser cuidada. Ele não resistiria ao convencimento feminino. Falaria tanto...e ele diria: desisto. Fica!
    Brincadeiras a parte, tenho medo da morte! Prefiro ficar em casa, sair somente mascarada e tomar todas as precauções.
    O mais difícil é ficar longe de quem a gente gosta! Aí dói, saudade dói!
    Acredito na Medicina e acima de tudo em Deus! Vai passar!
    Estou desacostumada com cartas! Melhor enviar logo!

    Um grande abraço

    Anne

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  5. A quarentena serve para aprender de uma vez:
    - amizade tem que ser recíproca.
    - amor tem que ser recíproco.
    - afeto tem que ser recíproco.
    - chega de viver sentimento e amor de uma só via. Sentimentos e amor têm que ter mão dupla.
    O texto não é meu.
    Recado dado entenda quem quiser.
    Engane-se quem quiser.
    Vocês são livres e estão sozinhos cada um na sua casa na quarentena ????
    Lucas: eu sei que você lê os textos então não me procura mais. Vou viver e viver assim que a quarentena acabar.
    Dá para entender não querer ficar junto na quarentena???
    Somos livres e vivemos sozinhos.
    Uma forma sua educada de mandar o recado. Saquei!
    Bárbara

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    1. Amiga Bárbara você está completamente certa em dar um basta nessa canoa furada. O cara quer ficar sozinho na quarentena. Simples: ele definitivamente não quer ficar com você! Chega de perder seu tempo. Fique com alguém com quem você não precise insistir para ficar; alguém que deseje estar ao seu lado por vontade e prazer; alguém que tenha a definitiva certeza de que fez a escolha certa ao querer voce. A quarentena vai resolver muitos relacionamentos.Aproveita a distância e esquece o Lucas!

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    2. Estou na mesma situação. Separados, filhos crescidos. E cada um na sua casa. Quarentena separados. Final da quarentena vou continuar na minha casa e ele já era... A realidade é dura, melhor encarar logo e seguir a vida. Acho que nem sinto a falta dele. Não tenho mais 20 anos para perder tempo. Quarentena do amadurecimento! Carmen

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    3. Você acha que ele está sozinho na quarentena. Não sabe de nada, inocente! Caio

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  6. Que pena que ainda és discípulo da FC. Talvez seja por tua capacidade de perdoar e conviver com erros gritantes. Mas é um excelente escritor e a quarentena está aqui para nos aprimorar. Ela é ótima nisso.

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    1. Fantástica carta! Excelente! Parabéns! Todos nós estamos aqui para nós aprimorar e quem somos nós para julgar? Atualmente um vírus pode acabar com nossa vida! Então não somos nada! Abraços

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    2. Prezado anônimo Incrível em plena pandemia, reavaliando nossos valores, alguém escreve: que pena que ainda és discípulo da Filosofia clinica. Eu diria que pena que você não é Discípulo ou Mestre da FC certamente estaria bem mais evoluído.. para você a quarentena não sera nada. Talvez volte pior. Desculpe mas é o que penso sobre os julgamentos. Lucia

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  7. Sr Ildo.

    A carta lembrou-me tempos felizes em que esperava o carteiro. Escutava Beatles, uma espera saudável.

    Mister Postman look and see
    (Oh, yeah) Is there a letter in your bag for me?
    (Please, please, Mister Postman) I been waiting a long, long time
    (Oh, yeah) Since I heard from that girl of mine

    Boas lembranças.

    Vou escrever uma carta. Só espero que o correio esteja aberto.

    Sucesso sempre

    Abraços

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  8. A quarentena tem sido difícil e cansativa. Tenho 60 anos e preciso me cuidar. Pela primeira vez na vida,apesar de me achar em forma, que senti o peso da idade. Moto sozinha, filhos casados, tinha um namorado e com a quarentena percebemos que não sentimos falta um do outro. Estranho né, o bacana foi que os dois sentiram e então acho que vamos ficar amigos. Claro, que sei que ex não virá amigo. Não deve virar. Só conhecido. Muitas mudanças na quarentena. Tempos melhores virão. Sabe que sinto um alívio com o final do meu namoro. Terminou pelo celular. Foi mais fácil. O importante é ter percebido. Gostei da carta. Muitos vao descobrir, redescobrir e terminar relacionamentos. É a vida ! Abraços Marta

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  9. 30 dias que estamos vivendo a pandemia. Parece um pesadelo.
    As notícias são terríveis violência contra mulheres e crianças, óbitos.
    E tem quem parece que nada está acontecendo
    Tenho meditando e orado.
    Percebi quem vale a pena manter na minha vida. O resto deixo no cosmos.
    Fiz uma limpa no face, insta, whats e no meu coração.
    Quero continuar vivendo e vivendo com quem me faz feliz por inteira.
    Escrevi cartas para mim.
    Soraia

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  10. Sr Ildo
    Em passeio pela internet, horas acordada, conheci seu blog.
    Resolvi compartilhar minha angustia e sofrimento.
    Nos últimos dias mesmo desejando o fim da quarentena, o retorno a vida dia a dia SOFRO vou precisar encerrar um relacionamento tóxico.
    Quarentena de angustia e reflexão, preciso manter me firme e decidida. Muita refexão e solidão.
    Quero ser completa para ele, não um estepe.
    Minhas amigas falam: na tua idade não vai encontrar um par facilmente. Vai levando...levando o quê?
    O que é a vida diante de um vírus! Nada
    Quando li o texto, percebi ele preferiu ficar só (penso que só) a vir para minha casa na quarentena???
    Caiu mais ainda a ficha.
    Poderíamos cuidar um do outro, aprofundar nossas vidas, mas preferiu ficar no seu apartamento. E eu no meu!
    O que impediria somos livres e sozinhos, separados, sem filhos em casa??
    Agora vejo: a vontade de não estar junto.
    Quanto interessa, aparece.
    Reconheço muito mais eu procuro que ele.
    Ohhhh vírus vieste para abrir meus coração e olhos???
    Minha decisão está tomada! Preciso rodar sozinha a ser estepe.
    Em tempo, a carta lembrou-me os tempos da escola.
    Tempos em que os relacionamentos eram verdadeiros.
    Ou melhor tempos em que eu não me iludia, hoje falta-me vergonha na cara, amor próprio.
    Eu vou conseguir, sozinha vou conseguir.
    Obrigada por compartilhar sua produção
    A Decidida

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    1. Mandou bem! Boa sorte e siga firme na decisão. O vírus veio e mostrou a realidade.
      Melhor assim

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    2. Amiga, não precisa ficar sofrendo até o final da quarentena. Se já decidiu, é só comunicar a ele e pronto, está tudo terminado. Tire ligo este pneu estepe e passe a rodar com mais autonomia.

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    3. Puxa nunca pensei que encontraria um conforto tão rápido.
      Vou terminar por telefone.
      Se quiser ficar amigo digo não. Amizade entre ex é pneu furado..despesa e chateação.
      Não passa de hoje e sigo rodando kkkkk

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