quinta-feira, 2 de abril de 2020

Desta vez, não arrisque


Desde criança aprendi que nosso bem maior é a vida.  O Talmud, livro sagrado dos judeus, enfatiza que aquele que salva uma vida é como se salvasse o mundo inteiro, inclusive havendo  na lei judaica uma obrigação bíblica de salvar vidas. É permitido quebrar quase todos os mandamentos a favor de uma vida em perigo.

Existe uma discussão clássica do caso de duas pessoas que estão viajando pelo deserto e apenas uma tem água suficiente para sobreviver. Seria melhor dividir a água e ambos morrerem ou um apenas sobreviver? Não há consenso, mas esta é a característica que dá graça e sabedoria ao Talmud: o debate, a argumentação. Vamos a ela.


A tese mais aceita é a de que o dono da água deve primeiro salvar sua própria vida, mesmo se isso implicar na morte da outra. No entanto, outros argumentam que é obrigatório colocar-se sob risco incerto a fim de salvar a vitima do perigo certo. A discussão fica ainda mais complicada quando uma terceira opinião afirma que o princípio de que “sua vida vem em primeiro” aplica-se também ao risco incerto, não devendo, portanto, correr o risco.

Baseado neste princípio, alguns rabinos proíbem a doação de um rim à paciente que está morrendo se isso colocar o doador em algum risco incerto. A maioria dos rabinos concorda que não é obrigatório colocar-se em situação de perigo duvidoso para salvar a vida de outra pessoa, mas o doador tem o direito de escolher passar por este risco  a fim de salvar uma vida. Os maiores doadores de rim da comunidade judaica, não por coincidência, são os judeus mais ortodoxos.

O Talmud vai mais longe, avança na discussão e fala do dinheiro gasto para salvar uma vida. É uma determinação que se gaste dinheiro a fim de salvar vidas. Se a vitima tiver como pagar, ótimo; caso contrário, o salvamento deve ser feito mesmo sem ressarcimento algum. Mais ainda, existe a obrigação de despender todo o dinheiro possível para salvar uma vida, visto que somente a vida é o bem maior, o dinheiro não. Outros menos radicais interpretam de forma diferente, sustentando que a perda da riqueza funciona como se fosse uma morte parcial e ninguém é obrigado a empobrecer para salvar a vida de outro.

Não sou expert em economia, gestão ou política, por isso não acho adequado me envolver em debates. Entretanto, assim como no Talmud, aceito os argumentos apresentados sobre relaxamento da quarentena, mas como médico e especialmente como ser humano, sinto-me no dever de contra argumentar e alertar sobre os riscos certos e incertos desta pandemia.

Não tenho como me furtar de defender a vida em qualquer circunstância e denunciar a banalização com que está sendo tratada. Escutar que morreram 900 pessoas na Itália, 800 na Espanha, 500 na França e por ai afora,  num único dia, parece não comover mais, virou rotina. Mais ainda, é tão surreal que não acreditamos, ou negamos que vá acontecer conosco.

Sabe-se  que durante esta pandemia muitos vão engordar, engravidar, enlouquecer, divorciar e também ficar órfãos. O que não podemos fazer é decretar qual risco cada um vai  assumir em prol da sobrevivência da economia global. Isto deve ser uma escolha individual ou um desígnio divino.

Quem da sua família você escolheria morrer pra economia não parar? Alguns hospitais já adotaram o critério de 75 anos de idade como limite máximo para instalação de um respirador em caso de necessidade por demanda excessiva. Assim, o coitado do médico intensivista não precisa entrar em conflito ético, nem dar explicações aos familiares. Quando tiver de optar entre duas vidas, seguirá as orientações do protocolo. Quem decidiu que uma vida após os 75 anos de idade tem menos valor que as demais?

Este fenômeno chama-se banalização da vida, aconteceu durante o nazismo quando soldados comprometidos com seu governo cumpriam ordens de transportar homens, mulheres e crianças para a morte. Tanto o soldado quanto o médico estão agindo sob circunstâncias  especiais que tornam praticamente impossível saber ou sentir que estão agindo de maneira errada. Foram gradualmente sendo desumanizados, perderam a compaixão por outra vida humana.

Isto não é privilégio de médicos e soldados. Pode acontecer também com gestores, juízes, autoridades. Afinal são seres humanos, ao menos foram um dia. Temos assistido demonstrações esporádicas de bondade, altruísmo e gratidão nas sacadas dos prédios, porém temo que tudo isso seja transitório e sob efeito manada.  Assim que possível, pessoas e empresas voltarão a correr para recuperar o tempo e o dinheiro perdido com mais voracidade que antes da pandemia. Não terão aprendido nada.   

Podemos salvar a vida das pessoas, mas não podemos salvar as pessoas da vida. Cada vez que um individuo sair à rua, obedecendo decretos ou por opção própria, será responsabilizado por estar cometendo o crime de correr o risco incerto de contaminar a si e ao próximo. Se você tira a vida de alguém, é como se matasse o mundo inteiro. A vida é o bem maior. Escute os médicos. Fique em casa. Não arrisque. Vai passar.

14 comentários:

  1. Sempre surpreendendo Dr Ildo! Sensacional! Adorei! Em reclusão, nada de rua, vai passar....bjs

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  2. Grata por este bálsamo de vida! Que possamos ponderar nossas atitudes... QUE TODOS POSSAM RECEBER O AMOR FRATERNO DE TUAS PALAVRAS!

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  3. Não é fácil aos 60 anos, sim tenho 60 anos, existir um decreto com multa ao sair na rua. Percebi que estou velha, apesar do botox, preenchimento e umas plásticas. Velha não, idosa! Caiu a ficha...idosa e grupo de risco. Estou mais depressiva como todas as minhas amigas idosas. Beatriz

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  4. Muito interessante esse texto.Grata.

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  5. Estamos tristes, frágeis,cansadas, com muito medo, percebo hoje que gostaria de ter um companheiro para contar. Sou do grupo que não pode sair, tento ocupar- me. Não está fácil...preciso ficar em casa ou viro uma Coroavirus. Preciso manter o bom humor! Carmen

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  6. Infelizmente algumas pessoas destroem vidas quando destroem sentimentos, mentem, iludem, brincam. A vida é banal expor os outros ao Coronavirus é fichinha para elas. Seria bom pensar na quarentena. Esther

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  7. Sinceramente eu não acredito na humanidade, tem gente boa sim! Mas, a grande maioria só enxerga o seu mundo, o seu bem estar não estão nem aí para quantos vão morrer.

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  8. Cada momento uma notícia, ficamos confusos, estou em casa e penso não vai acontecer comigo. E se acontecer..tenho algo a dizer a alguém? Ligo...escrevo um e-mail...vontade de resolver Tudo! Posso não estar aqui amanhã Liege

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  9. O silêncio da noite é igual ao do dia, o tempo não passa. A economia parou, a vida parou. O Coronavirus continua com seu show.

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  10. Falo por mim daqui para frente vou dar valor a quem me dá valor. Migalhas deixo para os pássaros. Trabalhando meu Amor Próprio! Cris

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  11. Nos últimos dias a reclusão tem trazido a saudade de quem já partiu. As brincadeiras, o sorriso aberto e a certeza que amanhã é outro dia, um dia muito melhor!

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  12. Boa noite. Nunca imaginei viver esse momento, difícil, disciplinado. A única certeza para meu futuro não quero mais sofrer. Não quero mais escolher errado, perder meu tempo com quem brinca Comigo. Não sou mais a mesma. Tenho até medo das mudanças que sofri. Rejane

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  13. De nada irá adiantar se ficarem somente na fala. É fácil na quarentena ter esse tipo de discurso e, assim que voltar a vida tudo continua igual, pessoas e coisas nem lembraram a diferença. A escrita aceita tudo. Pena do ser humano.

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  14. Fico em casa lendo teus artigos.

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