quarta-feira, 7 de junho de 2017

Buen Camino

Depois de atravessar o Caminho de Santiago andando, passei a gostar de caminhar. Solitário ou em grupo, nunca fiquei só, mesmo que não houvesse ninguém a meu lado. O pensamento se tornou meu companheiro de viagem. O corpo também assumiu papel determinante e passou a mostrar o valor de cada unha, cada dedinho do pé, cada quilo a mais por carregar.

Muitas vezes não havia ninguém para compartilhar o raiar do dia, uma cafeteria cheirosa escondida no meio do nada, uma cegonha trazendo comida para os filhotes. Batia fotos, mas por melhor que fosse a câmera, não conseguia transmitir a euforia daqueles momentos. Ficava com aquelas imagens e sensações guardadas em mim.

Houve uma noite especial em que me senti só. O peregrino russo tirou o violino da mochila e começou a tocar no pátio do albergue. Logo um casal de gregos passou a cantar e vários outros dançavam depois de quilômetros rodados e pés cansados. Ali, apesar de estar rodeado de pessoas, senti que estava carente e precisava de alguém especial para me abraçar,  segurar em seus braços e dançar.



Outros dias, bastava cumprimentar alguém com um “buen camino” e logo estava enturmado  como se fossemos irmãos. Andávamos horas conversando, mesmo sem falar o mesmo idioma. Logo se aprende quem quer falar e quem quer ficar quieto na caminhada.

No inicio minha mochila pesava demais. Carregava segredos que já não me pertenciam, preconceitos que atrapalhavam, regras de moral com prazos de validade vencidos, rancores mofados, amizades ilusórias, casos mal resolvidos, frustrações enferrujadas, certezas duvidosas, dúvidas cruéis, grandes, médios e pequenos medos.  Foram importantes em uma época, agora dificultavam meus passos.

Tinha que esvaziar aqueles fardos inúteis para ir adiante. O problema é que não tinha certeza se eram tão inúteis assim, poderiam fazer falta um dia. Vacilava e não jogava nada fora. Caminhadas longas obrigam o caminhante a ficar dias inteiros grudado na mochila. É assim que se aprende o peso do supérfluo. As costas doíam, a coluna pesava, precisava tomar uma atitude. Sentei no chão, olhei para a mochila distendida, tirei as coisas de dentro, escolhi o que poderia ser dispensável.

Hesitei um bocado, mas finalmente comecei a descarregar. Poderia ter feito isto muitos anos antes no consultório de um analista, no entanto, o caminho é mais ecológico, acolhe aquilo que não  nos serve e entrega a quem necessita. O caminho é solitário e solidário.  

Depois de Santiago, fiz outras caminhadas. Em cada uma, planejava o roteiro, traçava as melhores trilhas, calculava a quilometragem diária, condições climáticas, hospedagem mais econômica. Tudo estudado com bastante antecedência e atenção. Meses antes já estava sonhando com a viagem. Fazia inclusive a contagem regressiva dos dias.  Mas quando lá chegava, me surpreendia pensando em minha casa, meu trabalho, minhas rotinas, meus problemas.  Fisicamente estava no caminho, mas não estava inteiro lá.

Por outro lado, cada caminhada serviu para despejar uma ou outra carga obsoleta residual. Não é fácil se livrar de tudo de uma só vez, mas progressivamente vai se tornando menos complicado e indolor. Este é um trabalho que ninguém pode fazer por nós, cada um tem sua hora, seu jeito de lidar com exclusões. Nem tudo que excluí foram coisas ruins. Às vezes é preciso deixar para trás coisas boas, sair da zona de conforto e abrir espaço para o desconhecido.

Um peregrino não nasce pronto, ele se faz. Não me considero pronto. Sei que ainda existem muitos caminhos por percorrer e muito por descarregar. Sei também que não vou ter pernas suficientes para andar por todos lugares que sonhei, mas preciso continuar. Meus passos me conduziram até aqui, preciso e quero prosseguir nesta jornada.

Agora, depois de tantos quilômetros rodados, pretendo iniciar uma nova caminhada. Um jeito diferente de andar.  Talvez nem precise levar cajado, botas, mochila, saco de dormir. Tampouco metas, lugar, dia ou hora para chegar.

Quero caminhar bem devagar, quase parando. O tempo e a distância serão mensurados ao contrário do habitual. Desapegar já não será necessário. Paradas valerão mais que passos. O acostamento será tão importante quanto a estrada. O apego será minha bússola e o amor meu norte.

Há muitas histórias por contar. Há tanto que quero saber. Há tanto por compartilhar. Quer andar comigo?  

10 comentários:

  1. Gostei de teu relato, me senti viajando novamente. Viajar é muito bom! Arrumo tudo com carinho e atenção. Quando saio, vou de corpo e alma, as coisas do aqui e agora ficam. Vou por inteira, sou apenas aquela pessoa curiosa por conhecer tudo. Me percebo entrando na história via local ao qual estou, um encontro da epistemologia dos livros, que me parecia tão irreal. Mas nada tão grandioso como viver aquele momento e constatar que tudo vai além de minha imaginação. Me sinto como um infante atento aos detalhes. Não me preocupo com a volta, pois esta, chegará sem demora. Sinto saudades das pouca viagens que já fiz, voltar, estará sempre em meus planos!

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  2. Pena não estarmos prontos ao início da caminhada! Mas está valeria a pena? Mto bom seu texto , Ildo Meyer. Alguns descobrem bem precocemente o sabor e nuances dessa caminhada chamada vida. Outros precisam morrer e renascer. Alguns , infelizmente, passam p ela apegados as ilusões passageiras e conceitos distorcidos sobre a tal felicidade.

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  3. Sim, quero andar contigo. Partilhar momentos peripatéticos puramente filosofóficos seguidos de silencios intensos. Que tal uma caminhada no parcão, todos devidamente identificados com camisetas laranja filosófico e com os dizeres "caminhantes peripatéticos". Tô nessa

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  4. Sim, quero andar contigo. Partilhar momentos peripatéticos puramente filosofóficos seguidos de silencios intensos. Que tal uma caminhada no parcão, todos devidamente identificados com camisetas laranja filosófico e com os dizeres "caminhantes peripatéticos". Tô nessa

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  5. "Um peregrino não nasce pronto, ele se faz. Não me considero pronto. Sei que ainda existem muitos caminhos por percorrer e muito por descarregar. Sei também que não vou ter pernas suficientes para andar por todos lugares que sonhei, mas preciso continuar. Meus passos me conduziram até aqui, preciso e quero prosseguir nesta jornada."
    Também estou nessa jornada Dr.Ildo e entendo tão bem quando o senhor diz não estar pronto mas decidido em prosseguir..para frente"
    Hoje vou acender as velas de shabbat.Aprendi com minha vo ,tanto a braha como os movimentos,o cobrir os olhos com a maos..Cada vez que acendo as velas enxergo,sinto meus pais e avos que estão comigo invisíveis..Mas ao mesmo tempo não estou pronta..pq amanha pela manha as 8 da manha vou para minha aula de tênis e não vou respeitar o shabbat..entao como o senhor"Quero caminhar bem devagar, quase parando. O tempo e a distância serão mensurados ao contrário do habitual. Desapegar já não será necessário. Paradas valerão mais que passos. O acostamento será tão importante quanto a estrada. O apego será minha bússola e o amor meu norte.""Vou caminhar no meu tempo e no meu ritmo e me reencontrar com que eu realmente sou e como o senhor diz :o apego será minha bússola e o amor meu norte"

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  6. As vezes você caminha mas não sabe para onde está indo. Pode até pensar que é uma busca por espiritualidade, que se sente bem, mas nem sabe direito do que se trata. Minha caminhada é uma busca por mim, meus valores, minha essência que se perdeu ao longo da vida, tentando agradar pais, professores, amigos, mulheres,patrões,deuses. Busco o caminho do re-encontro comigo, com aquilo que verdadeiramente sou. Lá chegando, o Divino está comigo.

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  7. Entendo o que o senhor diz..e muitas vezes questiono minha busca pela espiritualidade,entretanto cada vez que dou um passo nessa direção sinto uma paz interior,e mais ...sinto um reencontro com aqueles que ja fora..quase uma conexão.Conversando com um rabino ortodoxo sobre essas questões ele fez um comparativo que vez sentido.Ao reconstruir os rituais e frequentar o templo vc cria uma conexão como um wifi..se não tivermos wifi nossos monstrinho tenologico não se conectam..nao conseguimos nos conectar com as pessoas,.Fez muito sentido na minha cabeça,Cresci em um ambiente avesso a espritualidade. Meus pais foram as pessoas mais generosas e doces que conheci.Mas tinha uma visão absolutamente cientifica da vida.Agora que eles se foram não consigo tolerar essa forma de viver e sinto que vou ser mais feliz acendendo minha s velas no shabbat e talvez preparando uma jantar lindo,com a melhor louca e prataria para ter os que amo a minha volta.Da amiga..anonima...

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  8. Levei algum tempo p descobrir aquilo q ,mesmo fazendo parte do meu cotidiano, fazia- me um mal terrível: ideias, conceitos,pre- conceitos, ambientes e (pessoas). Acho q nós nos tornamos pessoas insatisfeitas e até infelizes qdo esquecemos nosso " cerne". Aquilo q legitimamente é nosso eu e q nos leva ao caminho de paz interior. Levei algum tempo p concluir q mto de tudo q me cerquei fazia- me um ser mto distante daquilo q me fazia feliz. Mas em tempo e a tempo descobri q as coisas simples, as pessoas reais e autênticas , é q me tornavam aquela q sempre fui e deveria ser. Ainda bem...

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  9. Oi Eulalis Danasceno,desculpe o atrevimento em comentar o que escrevesses,mas entendo que o blog do Dr.Ildo não deixa de ser um fórum onde as pessoas baseadas em seus textos e ideias refletem,opinam,discordam ou sentem uma total e empatia um desejo de se comunicar e compartilhar..Senti o que vc descreveu por muitos anos..mas não tinha consciência de quanto me fazia mal estar distante de que eu verdadeiramente acredito que sou.Tive que me desapegar e me afastar de hábitos e pessoas nessa procura de paz interior.E como vc tb acabo pensando..ainda bem que estou me dando conta.Baruch Hashem!Ainda ha tempo..cada dia um recomeço..e vamos em frente..seja qual for a caminhada e a forma que a realizamos...com os pés ou com nossas sinapsesde nossas mentes..

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  10. Oi , Anônimo , gostei tb de seus textos. Mas até chegar a esta visão crítica , mtos anos se passaram. Mtas noites insones. Mtas perguntas sem respostas. Mtos silêncios de mim mesma. Mtas lágrimas solitárias. Mas ainda estou um pouco longe de chegar aquela jovem despretenciosa e desapegada q me faz sorrir qdo vejo fotos de anos atras . Mas este lampejo de consciência fez brotar uma esperança cultivo todos os dias . Quero estar em paz , viva e feliz . Chegarei lá . Conto c isto ...

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