segunda-feira, 26 de abril de 2010

CONFIANÇA sem FIANÇA

Procurei escapar de todas as maneiras, mas não consegui. Vou ter que me operar. Trabalho todos os dias anestesiando pacientes para cirurgias, mas desta vez sou eu quem vai estar deitado do lado de lá. Quando acordar na sala de recuperação, imagino um curativo enorme tapando uma cicatriz através da qual será retirado um pedaço do meu corpo. Vão tirar um pedaço de mim. Já estou sofrendo por antecipação.

Em quem confiar para realizar esta tarefa? Quem vou autorizar cortar minha pele, penetrar no meu interior, abduzir o pedaço que julgar conveniente e deixar a cicatriz como lembrança permanente desta agressão calculada, necessária e consentida?

Posso confiar no cirurgião carregado de diplomas, na indicação de uma boa experiência obtida por um vizinho, nas palavras tranqüilizadoras transmitidas durante a consulta ou na sala de espera da clinica lotada de pacientes? E posso confiar em mim, meu corpo vai reagir adequadamente?

Confiança é algo que não se pede; se conquista no dia a dia simplesmente cumprindo aquilo que se promete. Não pode ser comprada, não existe em versão econômica e demora um tempo para ser produzida.

Como então, a partir de uma consulta de 30 minutos passar a confiar e se entregar de corpo e alma para um médico? Não há tempo razoável para construir e transmitir confiança, e por mais fragilizado que o paciente se encontre, aquela imagem do doutor como um semideus salvador é coisa do passado.

Amores: procurando escapar ou encontrar, convidados ou intrusos, podem entrar em nossas vidas e eventualmente, em nossos corpos. Comportando-se como doenças, podem sugar e até mesmo nos deixar em pedaços, cheios de cicatrizes abertas. Por outro lado, outros vão surgir como médicos, deixando carinhos, amor, fluidos e lambendo nossas feridas. Amar envolve doação, entrega de corpo e de alma. Como saber quem afetivamente vai nos machucar, acariciar, enlouquecer, proteger, abandonar?

Quando alguém cruza conosco, chama a atenção e candidata-se a participar de nossa vida, seja médico, amigo ou amor, por melhores que sejam suas referências, aparência e atitudes naquele momento, ninguém pode ter certeza de seu comportamento no futuro. Nem do nosso. É preciso arriscar e pagar pra ver.

Tanto a confiança como a falta dela, são contagiantes. O inicio de um relacionamento é como caminhar no escuro, sempre existe o medo e nunca se sabe quando vai tropeçar. Se você confia em si, pode então depositar confiança no outro e tentar andar de mãos dadas. Mesmo assim, como diz Martha Medeiros, é como dar um triplo mortal intuindo que há uma rede lá embaixo, mesmo que todos saibam que não existe rede para o amor. Mas a sensação de existência dela basta.

Prefiro pensar que a tal rede não existe mesmo, e que mais importante que caminhar de mãos dadas, é saber que o outro vai saltar junto comigo.

Então tá, depois da cirurgia conversamos.
Leia mais no site www.ildomeyer.com.br
.

2 comentários:

  1. Snif...

    Quem vai tirar um pedacinho deste fofo??? E porque???

    Aiii.. me conte.. precisa de algo??

    .. to aqui, tá?

    Bjin

    Pitt

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  2. Dr.Ildo,
    Seu relato me transportou para o filme "Um golpe do Destino, de Handa Hainer. Lhe sugiro assistir e transformar sua vida e de seus
    pacientes, despertando a compaixão e a integração homem-profissão.
    Desejo-lhe sorte e coragem no enfrentamento das incertezas.
    Nem todos acreditam, mesmo assim desejo que Deus lhe ilumine.

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