terça-feira, 27 de maio de 2008

Espelhos e Janelas



Depois de quinze anos atendendo no mesmo local, o médico decidiu modernizar sua clinica. Reforma geral, informatização completa, aparelhos de diagnóstico de última geração, aventais novos e até mudança de nome. Ao invés de Consultório Médico passaria a se chamar Clinica Estética.



Não se sabe como aconteceu nem quem foi o culpado, mas na campanha de divulgação da nova clinica, foram suprimidas as três primeiras letras, e a clinica estética se transformou em clinica ética. Com a correria e a ansiedade da inauguração, a falta das três letrinhas nem foi percebida.


Conforme planejado pela equipe de marketing contratada, o resultado da divulgação maciça na mídia foi um sucesso: agenda do médico lotada para os três primeiros meses. Festa de inauguração e satisfação total com a iniciativa de modernização da clinica.


Os pacientes foram chegando para as consultas e percebiam alguma coisa diferente na clinica. Estranhavam o fato de cremes anti-envelhecimento, pomadas contra celulite, loções para evitar queda de cabelo estarem expostos em vitrines iluminadas em neon. Qual a relação entre estes produtos e ética? O que o médico estaria tentando transmitir com todas aquelas revistas mostrando modelos e manequins com seus corpos esculturais?


O médico também passou a notar algo diferente em seus novos pacientes. A grande maioria não estava tão preocupada com a aparência. Alguns com barba por fazer, cabelos em desalinho, roupas fora de moda, mas o que mais chamava a atenção, era uma preocupação muito maior com o futuro do que com o momento presente.


De fato, estética em seu sentido atual, nos remete a pensarmos em beleza, mas seu significado original deriva do grego e nos remete a experiências sensoriais. Enxergar, tocar, escutar, cheirar, degustar. Sensações momentâneas, prazerosas ou não, mas essencialmente ligadas ao presente. Depois de um tempo, escapam de nossos olhos, bocas e mãos virando apenas lembranças de um passado. Estética assim como sensações não nos remetem a um futuro, estão ligadas ao aqui e agora.


Por outro lado, ética tem a ver com valores que persistem no tempo. Educação, honestidade, bondade, caráter, vergonha transitam tanto no presente como viajam ao passado e exploram o futuro. Qualidades não ligadas aos órgãos dos sentidos, não dependentes das circunstâncias externas, nem perdidas com o passar dos anos.


Todos os pacientes buscavam a beleza, alguns preocupados com o lado estético, outros com o ético. Esta dualidade ética/estética, uma constante na vida, talvez tenha sido uma armadilha do destino tanto para pacientes como para o médico, pois ambos foram surpreendidos por demandas que embora aparentemente conflitantes, acabaram por colocá-los na obrigação de refletirem sobre aspectos fundamentais da existência humana.


A preocupação essencialmente estética, pode ser muito boa, mas por ser ligada ao momento presente, é fugidia e logo vai se transformar em passado, deixando uma sensação de vazio, até que surjam outras sensações que as substituam. É uma corrida eterna, sem linha de chegada.


A preocupação essencialmente ética prega uma postura mais voltada para a esfera social, para a coesão, para os relacionamentos. O sentido da vida humana é encarado como algo mais duradouro e não apenas simples momentos de prazer interligados através do tempo.


Nenhuma das duas esferas é completa sem a outra. Somos presos ao presente, mas também queremos existir ao longo do tempo. Prazeres estéticos tem seu valor, mas existe espaço também para algo mais significativo e produtivo. O equilíbrio entre ética/estética é o grande desafio contemporâneo e como era de se esperar, mais dia menos dia, acabou por invadir pacientes, médicos e clinicas.
Ao modernizar seu consultório, sem que percebesse, o médico descobriu uma evolução no atendimento de seus pacientes. A partir do desaparecimento involuntário das três letrinhas, pode perceber que nem só de espelhos sobrevive uma clinica estética, são necessárias também janelas, para que se possa ver o que acontece fora de nosso corpo. E ao olhar para os outros, nos tornamos mais bonitos.
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