segunda-feira, 1 de julho de 2024

A enchente e os livros

 

As águas das chuvas de maio pareciam um pranto de lamento dos céus enchendo o rio Guaíba. O noticiário avisava que poderia transbordar e haver inundação. Ninguém imaginava a proporção que alcançaria. Uma semana ininterrupta de chuva e a previsão se confirmou. Água invadindo, ocupando e apossando-se da cidade.

A casa de Dirnei ficava distante dez quarteirões do rio, não havia motivo para se preocupar, pensava ele. Mas a água avançava furiosamente, engolindo tudo que via pela frente. Em duas horas a enchente já estava no quarteirão vizinho e o céu continuava lacrimejando a cidade.

Assustado, Dirnei começou a recolher coisas do chão e colocar em lugares mais elevados, nas prateleiras superiores dos armários e até mesmo por cima destes.

Faltava ainda salvar a geladeira e o fogão. Desesperado, com as trovoadas perturbando seu pensamento e as águas já batendo à sua porta, Dirnei retirou os livros das prateleiras, empilhou-os no chão formando uma base de quase um metro de altura e colocou os eletrodomésticos sobre os indefesos manuscritos.

Entre a fome e a cultura, optou pelo estômago. Pobres livros, com tantas palavras que poderiam ajudar a encontrar outras soluções menos drásticas, foram condenados ao dilúvio. Poderiam até mesmo ser protegidos dentro da própria geladeira. Mas este é o preço que se paga pela ignorância do povo e o engodo dos governantes. Nas enchentes o político ganha, o pobre perde tudo.

A água, aquela que desperdiçamos, sujamos e depois culpamos por inundar nossas cidades e ceifar vidas é culpada por apenas dez por cento das enchentes. Os restantes noventa por cento cabem à população que não cuida de seu planeta e menospreza a força da natureza.

O castigo chegou, mostrando quem está no comando e quem é o verdadeiro senhor das terras. Estamos assentados, pensamos que somos os proprietários, construímos cercas, derrubamos florestas, exploramos, assolamos, devastamos, arrasamos, poluímos e prejudicamos uns aos outros. Esquecemos que onde quer que se viva, ali é o nosso templo.

Como era de se esperar, as águas entraram sem bater e sem cerimônia pela porta da frente na casa de Dirnei, subiram pelas paredes, alcançaram quase o teto. Nem a geladeira se salvou. Ele mesmo precisou subir no telhado e ser resgatado por um bote dos bombeiros.

Os livros? As águas levaram todas as letras, as páginas restaram molhadas e vazias, mas não ficaram em branco, agora estavam sujas de barro, sem idéias, histórias, poesias, dedicatórias.

Minha esperança é que as letras levadas pela correnteza não tenham sido perdidas em vão. Que as águas que caíram do céu possam milagrosamente ter organizado novas palavras de conforto, entregando de casa em casa, de dor em dor, de lágrima em lágrima, uma lição de esperança e humanidade  para o lar que cada qual perdeu.

Somos apenas passageiros neste vasto planeta terra, "nossos" corpos e "nossos" pertences materiais são emprestados, não são nossos. Dirnei está provisoriamente morando em um abrigo da prefeitura, sem casa, sem geladeira, sem livros. A seu lado, uma mãe solteira acalenta duas crianças contando histórias de  livro doado por alguma alma preocupada em também preservar a cultura.

Para toda malícia de um governante, existe a inocência de uma criança. Para toda tempestade, um arco íris. Para toda lágrima, um sorriso. Um livro e uma criança podem mudar o mundo.

Entre um pingo e outro a chuva não molha.

 

 

2 comentários:

  1. Me emocionei com o final. Como você consegue escrever tão bem e tocar o coração das pessoas? Parabéns . Sirlei Costa

    ResponderExcluir
  2. Quem me dera, não ter sofrido com tudo isso que passamos aqui no sul. Fiz pura recíproca de inversão, e acredito que ainda esteja em estado de recuperação terapêutica. Viver em constante sobressalto, na inquietude, no desassossego, não é para os fracos. Elevo minha oração ao altíssimo e que este possa amparar todos aqueles que, de uma maneira ou de outra estiveram envolvidos nestes momentos de tanta desolação.

    ResponderExcluir