quarta-feira, 29 de junho de 2016

Bem vindo ao mundo frenético

Depois de uma temporada peregrinando e refletindo sobre a vida no Caminho de Santiago, volto em paz para casa. Largo a mochila e as botas – companheiras inseparáveis de viagem, quase fazendo parte do meu corpo – num canto da lavanderia e sinto um forte aperto no peito, como se estivesse me desmembrando. 


Foram dias memoráveis juntos, fizeram o caminho sobre minhas costas e sob meus pés. São parte importante desta jornada. Impossível pensar na caminhada, sem lembrar de quanto me auxiliaram, quanto foram importantes, quanto estivemos colados. Deixá-las ali, naquele chão frio, não significava um alivio no peso que carregava ou o final do caminho, mas o inicio do retorno ao cotidiano, a agitação da cidade grande e a volta aos problemas mundanos.

Mesmo sem ter dormido direito no avião, não pude me esquivar do primeiro compromisso oficial já agendado pela família: jantar de boas vindas. Cansado ainda, preparo um banho quente, demorado, gostoso. “Como é bom voltar para casa e ter um banheiro individual, só nosso, e poder ficar o tempo que quiser no banho!” pensei enquanto me deliciava com a água morna escorrendo nas costas. 

Enrolado em uma toalha limpa e cheirosa, abro o armário  e vejo aquela pilha de camisas com modelos, cores e tecidos diferenciados. Preciso escolher uma que combine com as calças e o casaco para ir ao jantar. Imediatamente a mochila voltou à minha lembrança.                                                             .
Um caminho inteiro com uma calça e três camisas. Enquanto uma era lavada, outra usava no corpo, e a terceira ficava reservada para os dias mais frios. Não existia a possibilidade de escolha. Em todas as fotos, as mesmas camisas se repetiram, e isto não tinha a menor importância, não fazia diferença alguma. Era tudo simples e muito fácil.

Eis que agora, recém chegando, ainda com aquela paz de espírito do caminho, começo a ser desafiado pelas camisas coloridas para que escolhesse a melhor combinação. Tive vontade de voltar na mochila e pegar a velha e surrada camisa laranja, companheira de meditação e tranqüilidade.

Mas a cereja do bolo para me jogar no cotidiano ainda estava por vir. Na volta do jantar, fui surpreendido por uma blitz – balada segura. Estacionei o carro, baixei o vidro automático e escutei o policial gentilmente solicitar: sua Identidade, por favor!

Não pude me conter, abri um sorriso enorme. O coitado do policial não deve ter entendido o motivo da graça. Um caminho inteiro subindo e descendo ladeiras, caminhando dez horas diárias buscando minha identidade neste mundo, e agora, justo no primeiro dia de meu retorno, um policial intercepta o carro, questiona minha identidade e diz que a mesma vai ficar retida com ele.
Entreguei a identidade que lhe interessava - um pedaço de papel plastificado com alguns números - mas a outra, a que fui buscar, está guardada comigo, e só comigo. Esta ninguém mais me tira. Voltei para casa sorrindo, dormi em paz e sonhei com o caminho. As vezes é bom voltar para lá, nem que seja em pensamento.


Bem vindo ao mundo frenético.

2 comentários:

  1. Lindo e comovente texto, Ildo ! A mais pura e sublime verdade

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  2. Bela analogia de identidade. Lembro bem dessa época, cada um buscando sua verdadeira identidade. Eu também buscava a minha... Como saber o que o outro busca ou deseja? Como saber o que realmente esperar da vida? Muitas vezes nem sabemos realmente o que queremos, seria na partida, na caminhada que possivelmente isso ocorreria ou mesmo, no simples fato do retorno poderia ocorrer esta descoberta?
    Da minha parte isso demorou um pouco mais. Muitas armadilhas conceituais tiveram que ser quebradas e reconstruídas várias vezes. Hoje o caminho é mais suave, já não tenho mais pressa, apenas aguardo o momento certo de acontecer, se acontecer... Concordo que, ter para onde voltar é algo impagável, o retorno possivelmente, para alguns, é algo que traciona as bases categoriais dessa época, mas para outros poderá existir o desejo de se perder... Volto sempre que posso, em meus deslocamentos, reescrevo minhas viagens, um acalento para minha alma...

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