Depois de uma temporada peregrinando e refletindo
sobre a vida no Caminho de Santiago, volto em paz para casa. Largo a mochila e
as botas – companheiras inseparáveis de viagem, quase fazendo parte do meu
corpo – num canto da lavanderia e sinto um forte aperto no peito, como se
estivesse me desmembrando.
Foram dias memoráveis juntos, fizeram o caminho sobre minhas costas e sob meus
pés. São parte importante desta jornada. Impossível pensar na caminhada, sem
lembrar de quanto me auxiliaram, quanto foram importantes, quanto estivemos
colados. Deixá-las ali, naquele chão frio, não significava um alivio no peso
que carregava ou o final do caminho, mas o inicio do retorno ao cotidiano, a
agitação da cidade grande e a volta aos problemas mundanos.
Mesmo sem ter dormido direito no avião, não pude me esquivar do primeiro
compromisso oficial já agendado pela família: jantar de boas vindas. Cansado
ainda, preparo um banho quente, demorado, gostoso. “Como é bom voltar para casa
e ter um banheiro individual, só nosso, e poder ficar o tempo que quiser no
banho!” pensei enquanto me deliciava com a água morna escorrendo nas costas.
Enrolado em uma toalha limpa e cheirosa, abro o armário e vejo aquela
pilha de camisas com modelos, cores e tecidos diferenciados. Preciso escolher
uma que combine com as calças e o casaco para ir ao jantar. Imediatamente a
mochila voltou à minha lembrança. .
Um caminho inteiro com uma calça e três camisas. Enquanto uma era lavada, outra
usava no corpo, e a terceira ficava reservada para os dias mais frios. Não
existia a possibilidade de escolha. Em todas as fotos, as mesmas camisas se
repetiram, e isto não tinha a menor importância, não fazia diferença alguma.
Era tudo simples e muito fácil.
Eis que agora, recém chegando, ainda com aquela paz de espírito do caminho, começo
a ser desafiado pelas camisas coloridas para que escolhesse a melhor
combinação. Tive vontade de voltar na mochila e pegar a velha e surrada camisa
laranja, companheira de meditação e tranqüilidade.
Mas a cereja do bolo para me jogar no cotidiano ainda estava por vir. Na volta
do jantar, fui surpreendido por uma blitz – balada segura. Estacionei o carro,
baixei o vidro automático e escutei o policial gentilmente solicitar: sua
Identidade, por favor!
Não pude me conter, abri um sorriso enorme. O coitado do policial não deve ter
entendido o motivo da graça. Um caminho inteiro subindo e descendo ladeiras,
caminhando dez horas diárias buscando minha identidade neste mundo, e agora,
justo no primeiro dia de meu retorno, um policial intercepta o carro, questiona
minha identidade e diz que a mesma vai ficar retida com ele.
Entreguei a identidade que lhe interessava - um pedaço de papel plastificado
com alguns números - mas a outra, a que fui buscar, está guardada comigo, e só
comigo. Esta ninguém mais me tira. Voltei para casa sorrindo, dormi em paz e
sonhei com o caminho. As vezes é bom voltar para lá, nem que seja em
pensamento.
Lindo e comovente texto, Ildo ! A mais pura e sublime verdade
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