terça-feira, 21 de março de 2023

Deslocamento longo

Deslocamento longo pode ser considerado sinônimo de saudade ou lembrança? Pergunta de um aluno durante aula sobre submodos no curso regular de formação em Filosofia Clínica.

Em princípio não, responde o professor, mas em filosofia tudo pode questionado, então vamos à discussão.

Deslocamento longo é um submodo utilizado em determinados contextos após avaliação da Estrutura de Pensamento do partilhante  e sob critérios bem definidos, saudade é um sentimento e lembrança é algo que fica registrado na memória como resultado de experiências vividas.  

Chamamos de deslocamento a habilidade de nos transportar, seja no tempo ou no espaço. Existem dois tipos de deslocamento, curto e longo.

Deslocamento curto acontece quando voltamos nossa atenção para algo que está ao alcance de nossos sentidos. Escutar o barulho dos carros na rua, sentir o cheiro da grama molhada pela chuva. A atenção fica voltada para fora do indivíduo e o alvo tem propriedades sensoriais que se conectam através dos sentidos.

Deslocamento longo já é diferente, pois transporta a mente humana para algo que está fora do alcance dos sentidos, entrando no âmbito das abstrações internas. Pode-se tanto retornar ao passado como projetar o futuro, possibilitando ao homem ir além dos limites de seu corpo físico. Quanto menos conectado às sensações, maiores as possibilidades de abstrações.

No sentido das abstrações, a saudade apresenta semelhança com deslocamento longo. Tanto pode ser um amor, um lugar ou um momento do passado que nos machuca no presente, como pode ter o efeito de uma felicidade retardada. Uma ausência que insiste em ficar ao nosso lado. Em alguns casos a saudade é tão grande que já nem é mais sentimento, a pessoa é a própria saudade, que aperta e não solta mais.

Vive para encontrar os olhos da pessoa amada em cada improvável esquina, ou retornar a algum endereço que nem mais existe. Quando a saudade bate, tanto pode doer como confortar, pois é um modo eficaz de enxergar o quanto se foi feliz no passado, funcionando como uma dívida pelas bênçãos e amor recebidos e sendo paga em longas prestações.

Nesta altura da explicação, mais uma vez o aluno interrompe o mestre argumentando que é possível haver lembranças boas ou ruins do passado, assim como pode-se utilizar deslocamento longo abstraindo e transportando pessoas no tempo e no espaço para situações agradáveis ou desagradáveis, no entanto com a saudade existia uma ambivalência.

Bom e ruim ao mesmo tempo, causando confusão, imprecisão e obscuridade na abstração. Sorrisos e lágrimas concomitantes, pois mesmo amores e situações maravilhosas do passado podem machucar e ser dolorosos por sua falta no presente. A impossibilidade da volta não é um impedimento para o desejo, mesmo que frustro.

Embora sabendo que não se deve universalizar, o aluno termina sua explanação com duas perguntas. Saudade sempre é um sentimento ambivalente de algo bom que não vai embora mesmo que sua presença sensorial não seja possível? Pode-se ter saudade de algo ruim?

O tempo corre depressa quando a conversa é boa. Já estava quase no final da aula, a discussão estava animada, provavelmente ainda seria longa. O professor olhou para seu relógio e encerrou a aula como se estivesse em uma consulta terapêutica. Recomendou uma literatura, solicitou que exercitassem deslocamentos longos nos próximos dias e combinou que na semana seguinte prosseguiriam. Antes de terminar deixou duas citações como inspiração:

Saudade é quando a memória tem ciúmes da vida.

Crime perfeito é matar a saudade.

Artigo publicado na Revista da Casa da Filosofia Clinica, Edição outono/março 2023

 


quarta-feira, 1 de março de 2023

Velho, eu?

Velho, não.

Entardecido, talvez

Antigo, sim

 

Me tornei antigo

Porque a vida,

Tantas vezes, se demorou.

E eu a esperei

Como um rio aguarda a cheia

Mia Couto

 

Envelhecer faz parte da vida, é um processo de mudança pelo qual todos os seres passam. Vemos o envelhecimento em quase tudo ao nosso redor. Cães e gatos em nossas casas, pássaros no céu, peixes no mar, árvores nas florestas, conhecidos em asilos e nós mesmos em frente ao espelho do banheiro. Esta pessoa que enxergo no espelho, de cara lavada e sem nenhuma maquiagem é a pessoa com quem me deito todas as noites. E gosto dela cada vez mais.

Alguns levam a idade demasiado a sério e utilizam as rugas e os cabelos grisalhos como esconderijo para se paralisarem em suas memórias e queixas. Comigo não é assim, ainda sou um menino que já viveu setenta anos ou mais.

O numero que aparece no documento de identidade reflete a idade do corpo, não da alma. Nem do conhecimento, sequer dos sonhos, tampouco das emoções ou dos afetos. O corpo parte na frente da alma em termos de envelhecimento. Alma não envelhece, não se restringe a tempo ou números. Permanece com o humor dos dez, o viço dos vinte e o erotismo dos trinta anos. Alma é atemporal.

A idade é engraçada, tira-nos por fora o que nos dá por dentro. Vamos mudando a pele e gradativamente perdendo massa muscular, estatura, lábios e cabelos. No entanto ficamos muito mais sensíveis interiormente.

Então acordamos pela manha, olhamos a imagem no espelho e nos espantamos, não acreditamos que aquelas almas-criança com brilhos nos olhos, que dormiram sonhando com a beleza dos reinos encantados são os corpos envelhecidos que agora estão a nossa frente encarando-nos. Aqueles velhos não somos nós, alguma coisa está errada. Um paradoxo da vida.

Restam-nos duas escolhas: aceitar a realidade e se adaptar ou reformar o corpo para que se pareça com aquilo que a alma sente. A maioria das pessoas escolhe a última opção. Comigo não foi diferente, mas a vida me mostrou que ela segue acontecendo nos detalhes, nos desvios e nas alterações de rota que podem nos surpreender.

A mesma sociedade que busca a longevidade gera o horror ao envelhecimento. Assustei-me quando surgiram os primeiros fios de cabelo branco, era um sinal evidente de velhice. Estava enganado. Comecei a envelhecer mesmo só no momento em que me preocupei em escondê-los. Rejuvenesci quando relaxei e deixei os grisalhos crescerem natural e desalinhadamente por cima das orelhas.

Pensava que depois de ficar viúvo, a vida não seria mais a mesma e jamais seria feliz de novo. Sobrevivia de saudade, sofrimento e recordações. Por fora já havia desistido, mas por dentro ainda havia uma desculpa para recomeçar. Um dia Juliana surgiu e me devolveu o amor e a juventude. Dizem que o homem tem a idade da mulher que está a seu lado. E vice versa. Segundas chances são reais.

Achava que ser avô seria o atestado incontestável de velhice. Com o nascimento do primeiro neto, ganhei um novo motivo para sorrir e me emocionar. Posso até dizer que nasci de novo e voltei a infância em viagem de primeira classe. Brincamos quase todos os dias na pracinha do bairro e me renovo a cada castelo que construímos na areia.

Achava-me muito velho para mexer nestas coisas de computador e internet. Meus olhos não davam conta daquelas letras tão pequenas. Ao envelhecer a visão piora, porém podemos enxergar mais longe. Um par de óculos novos resolveu o problema. Atualmente tenho amigos de todas as idades em quase todas as mídias sociais e me atrevo a postar meus escritos sem receio de ser chamado de velho gagá.

Hoje sei que não é um número que vai dizer se sou velho ou novo demais. É minha mente quem decide a idade que tenho. O envelhecimento da alma depende do consentimento de quem a possui. Não conto mais a idade em anos, contabilizo momentos, faço valer cada segundo. A eternidade é feita de agoras e é tão relativa que às vezes dura o tempo de um abraço, o que vale é a intensidade do instante. Viver é saltar no escuro do não saber. Não quero viver sem arrependimentos, prefiro escolher o arrependimento certo.

O sonho da humanidade sempre foi a imortalidade. Em seu poema épico Odisséia, Homero narra as aventuras do herói Ulisses tentando voltar para casa após dez anos lutando na Guerra de Tróia. Quando seu barco naufraga, só ele sobrevive. Foi parar na ilha de Ogigia e lá encontrou a bela ninfa Calipso, que o seduziu oferecendo dois presentes para que ficasse com ela para sempre: imortalidade e eterna juventude. Quem de nós resistiria em aceitar uma oferta dessa ordem?

Temos medo de morrer porque temos medo de não ter vivido suficientemente. Ulisses se encantou com a idéia de vencer a morte e sem muito pensar, aceitou a proposta. Depois de um tempo, passou a chorar dia após dia junto ao mar. Sonhava em regressar para sua casa, não esquecia sua pátria, sua fiel esposa Penélope, seu filho Telêmaco.  Queria estar de novo com seus amigos, sua família, sua terra. Depois de sete anos preso e amargurado, foi libertado e conseguiu retornar, trocando a eterna juventude pela volta ao lar.

Estamos conseguindo reformar nossos corpos por dentro e por fora. A tecnologia e a medicina possibilitaram retardar o envelhecimento. A expectativa de vida aumenta a cada ano. Num futuro não muito distante, seremos fisicamente saudáveis até os cento e vinte anos. Ou talvez mais. Caberá então a nós, buscarmos o que Ulisses escolheu fazer em sua Odisséia: achar um sentido para a vida que ainda temos pela frente e sermos gratos e felizes.

Um bom cirurgião pode sumir com as incômodas rugas, mas não consegue resgatar o brilho de um olhar perdido na solidão da velhice. Um dia seremos apenas fotos, mas enquanto esse dia não chega, desejo levar  uma vida que me dê saudades e uma velhice que me permita sentir cada uma delas. Quero deixar saudades e não heranças. Nem flor, nem semente, agora quero ser terra fértil que cria, destrói, reconstrói, ensina e engrandece. Meu futuro ainda precisa muito de mim.

Envelhecer é um processo extraordinário onde cada um tem a própria chance de, sem pressa, ir ao encontro daquilo que antes fugia e, quem sabe, se tornar a pessoa que sempre deveria ter sido. Tudo que curamos em nós, protege nossos descendentes.