Diz a sabedoria popular que de
médico e de louco todo mundo tem um pouco. De onde surgiu essa ideia? Não gosto
muito de generalizações, mas, no meu caso particular, consegui o diploma de médico
bem cedo na vida. Aos vinte e três anos já o tinha segurado nas mãos, levado
para emoldurar e, poucos dias depois, estava lá, devidamente afixado em lugar
nobre na parede do consultório. O título de louco foi muito mais difícil de
conquistar. Exigiu um tempo bem maior para me aprimorar e, por enquanto, não
está em exposição.
Confesso que durante a faculdade,
cheguei a pensar em ser psiquiatra, mas todos os que eu conhecia eram, digamos
assim, “um tanto” estranhos, e não queria, de forma alguma, ficar parecido com
eles. Na época, fugia de qualquer coisa que se assemelhasse à loucura. A
brincadeira era fazer do velho ditado um trocadilho, e dizer que os psiquiatras
tinham “um pouco” de médico e “muito” de louco. Generalizações, como é sabido,
conduzem a equivocidades.
Durante décadas, me considerei
muito médico e pouco ou nada louco, mas a busca (ou quem sabe o caminho) da insanidade
sempre esteve latente. Eventualmente apareciam sinais de maluquice, mas ainda
muito incipientes. Aprendi a dançar flamenco, me inscrevi para trabalhar no
circo de Soleil, ingressei na faculdade de filosofia. Nessa última, descobri que o certificado de loucura era fornecido
apenas para aqueles que estão privados do uso da razão ou do bom senso, e, até
onde eu soubesse, filósofos primavam pela busca do saber, do conhecimento e da
razão. Sentia-me seguro naquele ambiente racionalista. Mal sabia onde estava
pisando.
Mas, afinal de contas, o que vem
a ser a tal da razão? De acordo com o dicionário, é a capacidade de criar e
articular palavras e pensamentos. Só isso basta? Claro que não. É necessário
que tais ideias sejam organizadas de maneira que não contenham contradições nem
grandes emoções.
Sócrates, Platão e Aristóteles
foram os precursores desse modelo de pensamento. Para eles, o corpo, as
sensações e as emoções desviavam o foco da razão e eram fonte de erros contínuos,
violência e desordem. Acreditavam que o homem deveria se opor à sensibilidade,
percepções e apetites do corpo e buscar a essência das coisas e a verdade no
pensamento lógico, sensato e coerente. A razão foi validada como o ideal de
interpretação do mundo.
Aquelas pessoas que não
conseguiam controlar seus afetos, contradições e paixões passaram a ser
excluídas da sociedade e rotuladas como loucas. Eram internadas em sanatórios
para que não atrapalhassem a vida dos tidos como “normais”, e a medicina viu-se
forçada a criar uma especialidade -
psiquiatria - para tentar,
primeiro entender e, passo seguinte, tratar assuntos que fugiam à razão. Agora
aquela brincadeira inicial começava a fazer sentido, uma vez que psiquiatras
foram os primeiros, e, quem sabe, os únicos médicos que se aproximaram da
“loucura”.
Felizmente, nem todos pensavam
assim. David Hume, filósofo escocês do século 18, discordava dizendo que “a
razão é, e deveria sempre ser, escrava das paixões”. Nietzsche, um século
depois, aprofundou o tema: “a razão escraviza o homem, levando-o à loucura”. Foucault,
filósofo francês contemporâneo, atacou fortemente a psiquiatria, ao afirmar que
médicos nunca dialogavam com a loucura, considerando que apenas a razão falava
sobre a loucura e, quando esta tentava “falar” sobre a razão, era sempre forçada
a se calar.
Como médico, fui treinado a
trabalhar com fundamento, lógica e coerência. Interpretar os sinais físicos,
ler os números que aparecem nos exames laboratoriais e enquadrar pacientes
dentro das patologias conhecidas. Minhas
verdades eram os paradigmas científicos, limitados pela razão e por valores
absolutos. O objetivo era sempre o mesmo, curar doenças e salvar vidas. A
vivência clinica foi me mostrando um caminho diferente e não menos fascinante. Doenças
se repetem nas pessoas, mas não de maneira igual. Cada um tem sua forma própria
de sofrer, fornecendo uma série de sinais e sintomas exclusivos. Inquietava-me
ver que nem sempre existia ferida aparente ou lesão física que justificasse o
pranto ou a dor referida.
Aos poucos, fui deixando de
racionalizar e me preocupar com respostas exatas. Comecei a descartar algumas
certezas e experimentar afetos, incoerências, paixões. Ao invés de posicionar o
estetoscópio no peito do paciente e escutar seus batimentos cardíacos, colocava
meu ouvido a sua disposição. Queria sentir se a pessoa à minha frente estava
satisfeita com seu modo de viver, orgulhosa de si, possuía medos, sonhos, apegos,
devoções.
Progressivamente comecei a apagar
em mim a tênue linha imaginária que separa a razão da loucura. O mundo não se
divide entre os que compreendem a vida e os insanos. É possível transitar entre
os conceitos de doença, cura, loucura e normalidade. Hoje consigo, sem pudor,
afirmar que louco não é a pessoa que perdeu a razão, louco é aquele que perdeu
tudo, menos a razão.
Maria idealiza a pessoa amada e
projeta nela tudo o que sempre sonhou. Está encantada com o novo amor. Atribui
características de personalidade, elimina defeitos e cria nessa pessoa virtudes
que na verdade não existem. Não se relaciona com a realidade, mas com o ser
inventado de acordo com as próprias necessidades. A convivência diária do
casamento a obriga a enxergar o parceiro como ele é, não deixando espaço para
sustentar a idealização. Maria não sabe mais o que fazer. Descobriu que o
marido é um ser humano e não a personificação de suas fantasias. Está ressentida.
Sente-se enganada e culpa o companheiro pelo fracasso do casamento. Maria é uma
pessoa normal? Está fora da realidade? Perdeu a razão? Quantas Marias assim você
conhece?
Louco é quem vive fora da
realidade? Esperança, saudade, sonhos, projetos, sentimentos, são menos reais
que mesas, tijolos ou árvores? É preciso ser concreto para dizer que algo
existe? Sempre nos ensinaram a beliscar nossos braços para saber que não
estávamos sonhando. É exatamente ao contrário que funciona. Se formos capazes
de sentir, seja lá o que for, é porque aquilo realmente existe. A maioria pensa
com sensibilidade, loucos sentem com o pensamento. Frio na barriga, coração
acelerado, saliva na boca, lágrimas nos olhos são sinais de materialidade do
pensamento.
A maior loucura do homem é ele se
achar normal. Num mundo onde os normais fabricam bombas, mentem, enganam, corrompem,
matam, deixam morrer, o que sobra para os loucos? Penso que loucura, hoje em dia,
é ser original quando quase tudo são replicas. É permitir que anjos e demônios
apareçam sem censura e possam dizer certas verdades que a sociedade se nega a
ouvir. É ter sensibilidade para enxergar uma lágrima muito antes dela ter caído
dos olhos de alguém..
Cansei de ser só razão. Antes
tarde que nunca. Prefiro a coerência irracional dos loucos à incoerência
racional dos lúcidos. A vida é como uma música, deve ser composta de ouvido,
com sentimento, delicadeza e emoção, jamais por normas rígidas. Preciso do
diploma de médico para exercer minha profissão, mas para trabalhar e viver, uso
o de louco. Existe um prazer garantido em ser louco, mas apenas os loucos o
conhecem. Quando me chamam de louco, considero até um elogio. Talvez a loucura
seja agora minha lucidez. De médico e de louco certamente tenho um bocado, e
não é pouco. Ainda bem.
Belo texto de reflexão. Somos loucos comparados a quem e a que? O que seria comportamento dito normal ou de padrão de uma determinada sociedade? Loucura, uma palavra que muitas vezes foi usada indiscriminadamente com seus variados significados e tipos. Seria eu, maluca, biruta ou insana para aqueles que não pensam e vivem com igual ritual ou que tenham determinado conjunto de gestos, palavras e formalidades, habitualmente imbuídas de características simbólicas, cuja representação é, usualmente, prescrita e codificada por uma religião ou pelas tradições de pessoas em um determinado contexto. Bem vindo ao mundo dos lunáticos amalucados.
ResponderExcluirDr Ildo!Cada vez melhor! Muito bom o texto. Adorei!
ResponderExcluirA trilha sonora deste post é: Maluco Beleza Raul Seixas a combinação perfeita
ResponderExcluirEnquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual
Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Um maluco total
Na loucura real
Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez
Vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
E esse caminho
Que eu mesmo escolhi
É tão fácil seguir
Por não ter onde ir
Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez
Eeeeeeeeuu!
Controlando
A minha maluquez
Misturada
Com minha lucidez
Vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza
Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com toda certeza
Maluco, maluco beleza
Gostei muito do texto, sobretudo porque revela um grau de amadurecimento do autor ao flexibilizar, a partir das próprias experiências, sua percepção sobre as pessoas, as coisas e a vida de um modo geral.
ResponderExcluirPássaros criados em gaiolas acreditam que voar é uma doença.
ResponderExcluirE os que estavam dançando, foram julgados insanos pelos que não conseguiam ouvir a musica. Nietzsche
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