Eva era uma mulher metódica e
compulsiva, para ela as coisas deveriam ser pretas ou brancas, oito ou oitenta.
Não havia meio termo. As pessoas eram solteiras ou casadas, amigos ou
namorados. Ignorava situações como “ficante”, “peguete” ou “amizade colorida”,
que seriam representadas pela cor cinza. Para ela, cinza era uma mistura de
cores, uma situação indefinida, uma transição para o autêntico. Nada a ver. As
situações da vida precisavam ter cor definida, rótulo e se possível, carimbo de
autenticação. Preto ou branco, solteiro ou casado, amor ou nada.
Conheceu Adão em uma festa, trocaram telefones, conversaram
bastante durante três semanas, sentiram vontade de se ver mais uma vez e marcaram
um encontro para a sexta feira seguinte. Gostaram tanto um do outro, que combinaram
sair de novo no sábado. No domingo,
beijaram-se. Ao se despedir, no portão de casa, Eva perguntou se estavam
namorando, pois para ela, amigos não se beijam. Preto era sinônimo de amigo e
branco significava namorado.
Adão, surpreso com a cobrança, argumentou que ainda estavam
se conhecendo, já considerava Eva mais que uma amiga, porém menos que uma
namorada. Era muito cedo para assumirem um namoro. Eva ficou confusa, pois não
conhecia aquela cor, era um cinza muito escuro, quase preto. Perdeu até a
vontade de beijar. Comunicou que diante do exposto, seriam apenas bons amigos
virtuais, não trocariam mais carinhos e retornou para seu branco existencial.
Pressionado, Adão assumiu o namoro, mas foi logo avisando
que terças feiras jogava futebol com os amigos, quartas freqüentava a
maçonaria, quintas tinha plantão no hospital e sábados, cuidava da mãe, que era
doente. Namorariam na segunda e na sexta feira à noite. Domingos iriam juntos à
igreja e passariam a tarde juntos.
Eva entendia que namoro significava quartas, sextas, sábados
e domingos juntos. Além disso, tinha outro credo religioso. Mais uma vez, seu
branco pretendido não tinha nada a ver com o preto de Adão, surgindo um cinza
escuro, diferente do anterior, mas ainda muito longe da tonalidade pretendida.
Perdeu um pouco do entusiasmo, mas decidiu experimentar esta forma rasa e
descolorida de namoro.
Em poucas semanas o namoro começou a ficar confuso demais
para Eva, que cobrou a presença mais efetiva de Adão na relação. Este alegava
que o importante era a qualidade dos encontros e não a freqüência, mas para ela
aquilo não era preto nem branco e preferiu terminar de vez, apagando aquela cor
estranha de sua vida. Disse ainda que não seriam nem mais amigos, pois ela o
desejava como namorado e não tinha mais condições de manter a amizade.
Certo dia, na tela preta imaculada de seu computador, Eva
recebe uma mensagem de Adão pedindo para se encontrarem. Recusou, mas disse que
poderiam conversar por mensagens. Aquilo representava apenas uma manchinha
cinza, muito clara em seu preto existencial.
Logo as conversas esquentaram, foram clareando a tela de
Eva, que pressionou mais uma vez Adão. Voltariam a namorar desde que ele
largasse o futebol e a maçonaria. Ainda não era o branco desejado, mas Eva já
respirava mais aliviada.
Durou pouco tempo esta fase mais clara. Adão quis fazer
sexo, Eva pretendia casar virgem e de branco. Acinzentou tudo. Sexo antes do
casamento era uma nuvem cinza muito feia, uma tempestade sujando seu vestido
branco. Terminaram o namoro, Eva queimou as fotos do casal, devolveu os livros
que estavam em sua casa, e solicitou que ele nunca mais a procurasse. Quase o
expulsou de casa. Demorou uns dias, o cinza foi sumindo, porém nunca mais o
branco nem o preto de Eva foram os mesmos.
Ainda tentaram mais algumas vezes transformar o preto no
branco sonhado por Eva, mas ela não conseguia suportar os tons cinza da
transição. Adão se esforçava, mas não sabia como fazer, não era pintor,
tampouco mágico. Sua natureza acabava sempre escurecendo o branco sonhado por
Eva, que com o tempo já era desbotado e sujo. Eva sonhava com o paraíso, mas
estava longe disso.
O tempo passou e um belo dia o destino aprontou. Uma
serpente muito esperta, explicou a Eva que o branco e o preto,
convencionalmente designados por cores, nada mais são que o resultado da
presença ou ausência de luz, que em sentido figurado significa conhecimento,
sabedoria, tranqüilidade, amor. Não eram
cores autênticas. O branco é a luz pura, onde há uma mistura total das sete
cores e, o preto, a ausência total de luz.
Além disso, a serpente explicou o
conceito de Yin e Yang no taoísmo. Duas forças opostas que expõem a dualidade
de tudo que existe no universo. Estes dois pólos arquetípicos são representados
pelo branco e preto, claro e escuro, representando o inflexível e o dócil, o
acima e o abaixo. No entanto, não existe simetria estática no diagrama. As
cores estão em um constante movimento cíclico. Dentro do pólo branco, existe um
pequeno ponto preto, e no pólo negro, um pequeno ponto branco fazendo o
contraste, e simbolizando a idéia de que, toda vez que uma das forças atinge
seu extremo, manifesta dentro de si a semente de seu oposto.
Complicou demais a cabeça de Eva. Preto
e branco, que sempre foram seus limites para a vida, deixaram de ser referência
e até mesmo cores. O preto em que antes vivia, agora significava uma ausência de cor,
de luz e de amor. O branco que sonhara
seria uma mistura e não a pureza imaginada?
Estonteada, confusa, Eva perdeu o sono.
Não sabia mais no que acreditar. Andou um tempo sem rumo, tropeçou, caiu na
cama de Adão. Este a acolheu, envolveu em seus braços, manchou seu vestido
existencial de vermelho. Eva entregou-se e nunca mais foi a mesma. Virou
mulher, finalmente. Adão também nunca mais foi o mesmo, transformou-se em
companheiro. Estão felizes. Às vezes é preciso fechar os olhos para
clarear a visão e perder o rumo para encontrar o sentido. Conduzidos pela
serpente, Adão e Eva retornaram ao paraíso, um lugar onde todas as cores
combinam e os preconceitos se calam.
Muito bom Dr Ildo!!! Adorei!
ResponderExcluirMarilucia Gandon - Seriam os contrastes o poder mágico da transformação e da sedução?
ResponderExcluirAdorei o texto! Parabéns!
ResponderExcluir"As vezes e preciso fechar os olhos para clarear a visão e perder o rumo para encontrar o sentido"Muito louco ler essa frase depois de ter lido teu texto sobre nossos pais ..nao morrem ficam invisíveis.
ResponderExcluirJa perdi muito meu rumo para encontrar o sentido e meu pai invisivel apareceu para mim..lindo,jovem,vestido com seu melhor terno ,suas gravatas de seda ..seus sapatos italianos.Com um sorriso lindo.Pq ele tinha o mais lindo sorriso ..'Isso Isa..vai em frente.Confio em ti minha filha..vc esta no caminho certo..vai em frente minha querida"
Talvez eu tenha colocado mais palavras do que ele de fato falou no sonho,mas ficou parecido..o fato e que estou me espiritualizando mais,buscando meus pais invisiveis..retornando para minhas raízes.