domingo, 5 de março de 2017

O preço de ser rei

Nasci com nove anos de idade. Alfabetizado, todos os dentes na boca, nunca usei fraldas ou chupei bico. Não lembro de nada antes dos nove. Não sei com quantos meses comecei a andar, a primeira palavra que falei, meu brinquedo predileto, o gosto da mamadeira, o nome das professoras da escola. Nunca tive o tradicional álbum do bebê, sequer me interessei em perguntar. Tudo que alcanço desta época me foi relatado, lembrança zero. Dizem que era tratado com todas as mordomias, como um reizinho, apelido que carrego até hoje. Mas por que esqueci ou apaguei da memória um período tão glorioso de minha vida? Tenho algumas hipóteses.


Primeiro neto, primogênito, minha mãe largou o emprego no dia em que nasci para cuidar de mim, a avó quase foi morar conosco para babar o netinho. Recebi o nome do governador do Rio Grande do Sul e fui tratado com honras de chefe de estado. Dormia na cama dos pais e ao primeiro gemido, meus anseios eram atendidos. Nem precisava chorar, um suspiro bastava. Carregava o rei no umbigo, o mundo girava ao meu redor.

Quando nasceu meu irmão, dois anos e meio mais tarde, ignorei sua presença. Ao invés de ceder o lugar na cama dos pais e mudar para um berço no quarto ao lado, comecei a chorar mais forte para garantir meu trono. Sobrou para o irmãozinho, recém nascido, dormir longe do seio materno. Contam que a preferência de minha avó por mim era tão gritante, que durante um incêndio em sua casa, saiu correndo, me transportando em seus braços, deixando para trás o irmão de meses, em meio ao fogo e fumaça. Por sorte os bombeiros chegaram a tempo.

Nem é preciso dizer que os brinquedos e roupas novas eram todas para mim, o irmãozinho menor herdava aquilo que não me servia mais. Nasceram ainda duas irmãs. Não lembro de minha mãe grávida, da barriga crescendo, de perguntar ou receber explicação de como ou porquê chegavam bebês em nossa casa. Apareciam de repente e lá tinha eu que voltar a defender meu reinado.

Até os quatro ou cinco anos, a artimanha para garantir meus privilégios era chorar forte e continuadamente até os pais cederem. Depois mudei a estratégia, substitui o berreiro e as lágrimas pelo arquétipo de filho exemplar, o modelo, o perfeito. Os pequenos choravam, davam trabalho, solicitavam atenção continua dos pais. Eu era diferente, ou pelo menos fazia de conta. Respeitava os mais velhos, não fazia mais pipi na cama, comia tudo que me ofereciam, não tinha crises de choro, obedecia, jamais questionava, tirava boas notas na escola, estava sempre disposto a prestar ajuda. Esforçava-me para superar as expectativas colocadas sobre mim. Os outros formavam a plebe rebelde e reivindicadora; eu seria diferenciado, superior. Manteria meu trono na base da servidão.

Assim fui levando a vida, até que aos nove anos de idade, num dia chuvoso do mês de julho, acordei, senti falta da mãe e fui informado que ela fora ao hospital buscar uma nova irmãzinha, e que esta me traria de presente uma televisão portátil. A partir daí, como no conto da Cinderela, despertei, olhei ao meu redor, percebi que existiam vidas além da minha, dediquei mais atenção a elas, e passei a lembrar de fatos e sentimentos.

Esperei ansiosamente pela chegada da televisão, a nova irmãzinha desta vez foi recebida de forma diferente, foi bem vinda. Não ameaçava mais minha soberania, que levou nove anos para ser conquistada e custou a memória de minha meninice.  Esqueci todo o amor e carinho que recebi de pais, avós, tios, e irmãos menores.  Paguei um preço muito caro querendo ser rei e lutando para ter o amor só para mim. Na busca de um trono, não pude ser criança. Por uma coroa, tornei-me escravo. Não me orgulho desta infância. Para não sofrer, esqueci.  A memória pode ser uma ferida muito dolorida ou uma lembrança inesquecivel.

Troco meu reino por outra infância. Dou cetro, coroa e trono com muito pouco uso.



5 comentários:

  1. E como diz o ditado popular: "O tempo coloca cada um no seu lugar...Cada rei ou rainha no seu trono, e cada palhaço no seu circo"

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  2. Adorei seu livro visita ao médico. Já havia assistido a palestras suas, agora sou sua fã

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  3. Maria Euridice Correa Marota Ainda bem que este rei acordou.E não estava nu ...

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  4. Sei muito bem, o que é ter de aproximar a competência a inteligência de um irmão considerado como "arquétipo de filho exemplar, o modelo, o perfeito." Porém, isso me fez enfrentar a vida de uma maneira singular. Fui capaz de trilhar por caminhos nunca antes sonhados.

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  5. Quanto mais leio mais gosto!! Beijo

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