terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Quebrando o paradigma


Quando iniciei minha residência médica em anestesiologia, excitado com a possibilidade de controlar a dor perioperatória e suas conseqüências, dei vazão a meu lado filosófico e descrevi assim minhas expectativas em relação ao conhecimento por adquirir: “Tomei uma decisão, vou me preparar com o objetivo de fazer com que as pessoas não mais sofram, nem que para isso tenha que fazê-las dormir”.

Eram palavras espirituosas, mas refletiam um sentido mais amplo para a anestesia. Além de aliviar a dor, fazer dormir e acordar, queria tratar, e se possível eliminar o sofrimento emocional decorrente do adoecer.  Estava iniciando meu treinamento, não tinha a menor idéia de como lidar com emoções, mas imaginava que associado a outras alternativas,  o sono poderia servir como um bálsamo para o sofrimento humano. 


Sofredores das mais variadas estirpes descobriram isto bem antes de mim e utilizam-se do sono medicamentoso como um escape da “vida dura”. O problema é que “conflitos afetivos” não desaparecem quando se dorme, são tão somente anestesiados e o alivio é temporário. Quando acordam, os problemas ainda estão no mesmo lugar. Por isto mesmo é que dormir não deve ser a primeira opção para tratamento da infelicidade. Pão e circo também funcionam como ópio para o povo, atenuando as dores sem contudo curá-las.

Não era este o tipo de anestesia com que sonhava. Pensava em uma anestesia física e emocional. De um lado o ato técnico-científico, removendo a dor cirúrgica do corpo, e de outro, um apoio para a alma que sempre se debilita quando o indivíduo adoece. Dormir física e acordar psicologicamente.

Antes da cirurgia, o contato com o anestesiologista costuma ser de curta duração, porém intenso em emoções. Carente, fragilizado e ansioso pela doença, o paciente procura um vinculo de confiança para poder se entregar. Sabe que enquanto estiver inconsciente ou sedado, sua pele será cortada, seu corpo invadido, talvez retirem um pedaço e quando acordar, será presenteado com uma cicatriz. Além disto, será afastado de seu convívio familiar, social e profissional, passando a conviver com situações novas.  Precisa acreditar que será bem cuidado e terá toda a atenção e recursos disponíveis nesta sua jornada.  Quem lhe dará esta segurança? Quem será o elo de ligação entre as novas rotinas e o mundo do qual foi afastado?

O cirurgião precisa ficar concentrado na anatomia, no bisturi, no sangramento, e nesta hora, encontra-se totalmente focado no campo operatório, não tendo condições de cuidar do paciente como um todo. Esta vigilância precisou ser terceirizada para o anestesiologista, que durante muito tempo não soube entender o significado e a grandiosidade de seu trabalho.  Restringia-se a conhecer o paciente na sala de cirurgia e anestesiá-lo. Incógnito, nos bastidores, tratado como um auxiliar técnico, sequer apresentado pelo nome, aguardava o paciente acordar e dava por encerrada sua missão.

Manter o paciente sonolento, imobilizado e sem dor, satisfazia cirurgiões, pacientes e familiares. Nunca me conformei com este respaldo técnico, ambicionava ir além. Queria oferecer antes de tudo, segurança. Física e emocional. Pacientes e cirurgiões precisariam estar tranqüilos e confiantes de que um especialista assumiria provisoriamente o controle do estado de consciência, reflexos e sinais vitais, enviando todos seus esforços e conhecimentos para restabelecê-los integralmente ao final da cirurgia. Imaginava uma maneira de deixar o paciente seguro e minimizar sua ansiedade, de preferência sem uso de medicação. Como fazer?

A oportunidade de quebrar o paradigma, sair do anonimato e mostrar-se como um médico depositário da confiança acontece com o paciente desperto.  É neste momento de vulnerabilidade e dependência que a demonstração de conhecimento, experiência, respeito, atenção e empatia com o sofrimento alheio começam a construção da autêntica relação médico-paciente.

Para ser valorizado como médico é preciso agir e posicionar-se como tal. Por vezes será necessário desenvolver habilidades de psicólogo, assistente social, enfermeiro, juiz de direito. Outras vezes atuará como cardiologista, intensivista, pediatra,  mas acima de tudo, a arte de anestesiar está em fazer com que percebam a genuína intenção e o tamanho da responsabilidade de um médico especialista ao assumir a posição de guardião da vida, depositário da confiança e elo de ligação entre paciente, cirurgião e familiares.

Evoluímos como especialidade nestes últimos 50 anos. Anestesiar é muito mais do que fazer dormir e acordar sem dor. Certamente avançaremos em direção ao lado emocional da doença física. Espero que as novas gerações consigam transformar em realidade aquele meu velho sonho e possam aliviar também aquelas dores que o fazer dormir não consegue curar, as dores da alma.

Artigo dedicado a meu filho Leonardo, que se formou em medicina e inicia agora sua especialização em anestesia.






3 comentários:

  1. È isso aí, Ildo ! Pena que os médicos, de uma maneira geral, não estão aprendendo ( ou esqueceram )a ver o paciente como um ser humano fragilizado, o relacionamento tem sido cada vez mais frio, impessoal, " na corrida "....
    Belas palavras ! Abraço e parabéns tanto por elas como pelo filhote !

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  2. Dr.Gostei do seu artigo e eu posso dizer que sentada na sala de cirurgia eu perguntei quem é o anestesista? aí o Sr. apareceu na minha frente e eu disse: Ah! então esse é o homem mais importante daqui, e logo em seguida percebi que estava descuidando do cirurgião e falei, o cirurgião também claro, o Sr.de máscara, só me concentrei nos seus olhos verdes,olhei firme nos seus olhos como quem firma um pacto, e disse por favor Dr. não me deixe ouvir nada. O Sr. me disse pode deixar e me confirmou com o olhar.Eu sou grata aos olhos que não me deixaram ouvir e as mãos que fizeram caminhar.Elza Leal.

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  3. Muito interessante e verdadeira esta visão. Parabéns, dr. Ildo.
    Veronica

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