terça-feira, 17 de agosto de 2010

Separou mais vezes que amou

Ela tinha não só o discurso na ponta da língua, como também o colocou em prática várias vezes. A mocinha era daquelas defensoras confessas do casamento, uma ativista da instituição, mesmo na contramão do discurso da maioria dos descasados integrantes da faixa madura-idade.

O negócio dela era casar. Elaborou mentalmente o estatuto do casamento perfeito. Para ela casar significava partilhar não só as escovas de dente, dispostas no porta-escovas que sonhou comprar desde que o viu naquela revista de decoração, assim como todos os espaços do que idealizava simbolizar o ‘lar doce lar’. Partilhar a cozinha e todos seus aromas, sabores, alquimias, químicas e físicas que a mesa de apoio ou bancada da pia lhe permitissem experimentar.

Tinha a cama dos sonhos também. Uma king size sob medida, perfeita para as noites, manhãs, tardes, madrugadas de prazeres inconfessos, e outros perfeitamente confessáveis, como aquecer mãos e pés gelados no peito e pernas quentes do seu par, sem que este dissesse um ai. E coitado dele se ousasse reclamar do motivo das extremidades frias da mocinha, porque enquanto ele já repousava na cama, ela, escovando os dentes, circulava pela casa só de camiseta (dele), cumprindo sua tarefa de checar portas, janelas e luzes antes de dormir.

Casar para ela era acordar cedinho, beijo de bom-dia, sexo, banho, café da manhã, tele-jornal com volume suficiente para acordar o prédio inteiro só para saber a previsão do tempo lá do banheiro enquanto se maquiava. Depois, fé em Deus e pé na tábua, beijinho de tchau e cada um para suas vidas lá fora.

E durante o tempo que estivessem na rua, casar para ela era ter a certeza de que bastava apertar a tecla n. 2 do celular (discagem rápida) e, no máximo de três toques, ouviria a doce voz do marido dizendo: 'oi Delicinha!' - isto sem que ela se sentisse uma margarina e, de quebra, a voz traria a informação de que ela estava livre da experiência traumatizante e duvidosa de escutar a gravação: 'eixxxte telefone móvel encontra-se fora da área de cobertura ou deixxligado, tente maixxx tarrrde'. Imagine! Casamento pressupunha a perfeição, que obviamente não passava por conhecer a mensagem da caixa postal de seu par.

E a TPM então, ele já teria feito um curso de imersão, passando por todos os módulos avançados, o que o tornava capaz de diagnosticar a avalanche hormonal no primeiro suspiro e de imediato providenciar a profilaxia de neste período jamais contrariar a fêmea. Ele seria um super, super não, um mega-blaster homem.

E assim conheceu o primeiro, apaixonaram-se e quis logo pôr em prática suas teses sobre o casamento. Estatuto em punho, já nos primeiros meses começou a ficar incomodada, algo de muito esquisito estava acontecendo com aquela relação. Como podia ele deixar sua escova de dente jogada sobre a bancada da pia, esquecendo de colocá-la na peça escultural, determinada pela revista de decoração? Ora, sem desmerecer as alianças, escovas juntinhas também representavam o símbolo da união. Foi crucial, e no fim do primeiro ano ela já não mais dividia a bancada da pia, muito menos a peça artística desprezada por aquele insensível à arte.

Veio o segundo. Esse era um expert em decoração. Ficou tão encantada com seus conhecimentos sobre o tema, que não demorou fazer a proposta de dividir todos os espaços de suas vidas - leia-se: um novo ‘lar doce lar’. Casaram e partiram em lua-de-mel para a Itália. E como não poderia deixar de ser, Murano era destino certo. Mas quis o destino que um raro e belíssimo lustre (de Murano), escolhido a dedo pelo casal, despencasse fatalmente sobre a cabeça do moço. Não, ela não viuvou. Nada grave, a fatalidade está na perda irreparável da peça única. O marido sobreviveu, tendo como sequela apenas a perda do olfato e paladar. Não deu outra, consultou o rol de artigos de seu estatuto do casamento e o resultado foi a dúvida de como sobreviver sem aromas, sabores e temperos. Ela bem que tentou, só que sem dividir a cozinha o encantamento se foi pelo ralo da pia, depois de passar pelo triturador da frustração.

Entretanto ela tinha fé. Não tardou aparecer o terceiro. Esse, além de idolatrar decoração, tinha por hobby cozinhar! Mas quem disse que seria fácil? Não precisou mais que dois invernos para saber do pavor dele por extremidades geladas tocando sua pele quente e delicada, além de deixar claro o exagerado apego às suas gigantescas camisetas de malha, que ela se servia diretamente do armário dele sem pedir licença. Egoísta (!), sentenciou. E veio o quarto, quinto e sexto maridos. Um detestava tele-jornal matinal no volume máximo, o outro jamais entendeu o artigo do estatuto que estabelecia pormenorizadamente as funções inconfessáveis de uma cama king e o último, bem, este a apresentou à caixa postal do celular.

Não se sabe ao certo se depois de todos esses casamentos o estatuto da mocinha (agora uma ‘evelhescente’) sofreu reformas ou recebeu alguma emenda. Ouviu-se dizer que estava pensando em reconsiderar e convocar uma espécie de Poder Constituinte, onde Câmara e Senado seriam representados por divãs de analistas das mais variadas correntes, que se reuniriam para a complexa tarefa de elaborar um novo Estatuto Matrimonial.

Dos desdobramentos dessa ideia racional não se tem notícias, a única informação segura é que ela ainda não desistiu. Conta a lenda que a moça passa dias e noites circulando entre divãs, escritórios de advogados, barzinhos da moda, lojas de decoração, feiras de eventos, seminários e academias de ginástica, buscando o super-mega-blaster-sensível-romântico-disponível-ardente-criativo-inteligente homem ‘ideal’. Homem ideal? Nesse caso, talvez o ‘ideal’ mesmo seja torcer para que um lustre, não tão pesado quanto um Murano, despenque sobre sua cabeça a ponto de apenas fazê-la acordar e descobrir que enquanto sonhava o casamento perfeito deixou escapar amores – imperfeitos, porém reais.
Artigo escrito em parceria com Maria Janice Vianna
Leia mais no site www.ildomeyer.com.br
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2 comentários:

  1. "Separou mais que amou"...Meus Parabéns! Gostei deste artigo, cada vez mais estes sentimentos e turbulências estão presentes em nossas vidas, uma busca incessante por isso ou aquilo, onde na verdade as coisas simplesmente acontecem, só que as vezes estamos imaturos de mais, outra vezes maduros demais e assim vamos vivendo...hehehe...
    Um abraço.Ieda.
    PS:ah, Muito bacana esta parceria!!

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  2. Dr. Ildo,
    Madonna se enquadra muito bem no seu artigo. Pior são as moças, quase adolescentes, que buscam homens bem mais velhos, engravidam e acreditam que estão com o futuro garantido. Muitas escolhem pelas vestimentas e quando percebem que o "gajo" só têm aparência se desesperam, partem atrás de outra gestação com um segundo parceiro, sem a certeza de que esse vá assumir o abacaxi.
    Com o sr. escreveu em outra oportunidade, existem homens diferentes. Digo-lhe que tambem encontramos algumas mulheres que, antes de mais nada, pensam no futuro e garantem sua estabilidade no trabalho. A labuta, sem dúvida, é a maior parceira das pessoas vitoriosas.

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