terça-feira, 3 de novembro de 2009

O ANESTESISTA

"Desde que comecei a escrever este blog, só inseri um texto que não é de minha autoria. Agora, chegou a vez do segundo. Rubem Alves conseguiu descrever com muita sensibilidade a magnitude, quase nunca percebida, do trabalho de um anestesiologista. Sendo esta a especialidade médica que exerço diáriamente, suas palavras me emocionaram e achei que poderia dividir esta visão poética."
A anestesia foi a primeira de todas as especialidades médicas. São as Escrituras Sagradas que o afirmam. Pois Deus, para retirar de Adão a costela necessária para a criação de Eva, fez cair sobre o homem um sono profundo. Isso, fazer dormir, é ato de anestesista. Foi só então, depois de exercer as funções de anestesista, que Deus se transformou em cirurgião. Deus não queria que o homem sentisse dor. Uma cirurgia feita sem anestesia é uma experiência de uma brutalidade indescritível. Muitos prefeririam morrer a sofrer os horrores da dor de uma cirurgia sem anestesia.
O livro "O físico" descreve como era a cirurgia antes da descoberta da anestesia. Amputação de uma perna. A pessoa amarrada. A navalha cortando a carne. Os gritos. As contorções do corpo. O sangue jorrando. Depois a serra no seu reque-reque serrando o osso. Seguia-se a costura da carne. E, para terminar, o cautério com azeite fervente ou ferro incandescente.
A dor é o que existe de mais terrível na condição humana. Muito cedo nós a experimentamos. O nenezinho chora e se contorce com suas cólicas. Delas não tenho memória. Mas me lembro das cólicas do meu primeiro filho, que chorou por seis meses, sendo que todos os chás, remédios e benzeções foram inúteis. A única coisa que aliviava era pegá-lo no braço e colocá-lo de barriga para baixo. Todo pai gostaria que os deuses fossem caridosos e transferissem para ele a dor do filho. Doeria menos sentir a dor do filho que vê-lo sentindo dor sem nada poder fazer.
Meu filho Sérgio, o que sofreu cólicas por seis meses, é médico e se especializou em anestesia. É possível que Freud explique. Nossos impulsos vocacionais têm raízes em lugares obscuros da alma. O que não acontece com as escolhas profissionais, que nascem de considerações racionais sobre o mercado de trabalho. É possível que sua vocação de anestesista tenha nascido de suas experiências esquecidas de sofrimento. Aí ele sentiu que seu destino era lutar contra a dor.
A anestesia é uma especialidade modesta. É o cirurgião que executa o grande ato! É ele que é o herói! É o seu nome que é lembrado. É o cirugião que ganha mais. E, no entanto, enquanto o cirurgião está com sua atenção concentrada no lugar preciso do corpo que ele corta e costura, o anestesista está com sua atenção concentrada na vida adormecida. Ele vigia os seus processos vitais. Ele cuida para que a vida não vacile enquanto o corpo é cortado.
Há também as dores da alma que nenhuma cirurgia consegue curar. O medo, por expemplo, não pode ser amputado. Pena. Porque o medo paralisa a vida. Dominada pelo medo, a vida se encolhe, perde a capacidade de lutar, entrega-se à morte. Animais amedrontados se deixam matar sem um único gesto de defesa. E, pelo que sei, as pessoas têm muito medo da anestesia, medo que chega a beirar o pânico, mais medo da anestesia que da violência do ato cirúrgico. É que elas têm medo de dormir. Quem dorme está indefeso, à mercê. Quem está dormindo volta a ser criança. As crianças têm medo de dormir. Por isso elas choram, não querem dormir sozinhas, desejam alguém ao seu lado. Alguém que cuide delas enquanto elas dormem. As canções de ninar são para tirar o medo a fim de que o sono seja tranquilo.
A anestesia pode ser feita de duas formas. A primeira é a anestesia como ato técnico, científico, competente, ato que se executa sobre o corpo da pessoa que vai ser operada. A segunda é igual à primeira, acrescida de um cuidado maternal. O anestesista assume, então, a função do pai e da mãe que cantam canções para espantar o medo. Foi o Sérgio que me contou.
Conversamos muito sobre o que fazemos. E como ele se orgulha do que faz, ele me conta. Contou-me sobre as visitas aos pacientes amedrontados, às vésperas da cirurgia. Na maioria, crianças e adolescentes. O objetivo dessa visista é técnico: checar o estado físico do paciente: pressão, coração, vias respiratórias, etc. Mas a pesssoa que está ali é mais que um corpo. É um ser humano. Está com medo. Medo da dor. Medo da morte, pois nunca se pode ter certeza. É preciso espantar o medo para que a vida não se encolha. mas o medo só sai quando se confia. Não é qualquer pessoa que tira o medo de dormir da criança. Há de ser alguém em quem ela confia. Essa pessoa, e somente ela, tem o poder de cantar uma canção de ninar. O anestesista se transforma então em mãe e pai: pega no colo a criança amedrontada - diante da cirurgia todos nós somos crianças!
Rubem Alves
Leia também "Quebrando o Paradigma", publicado em 27/12/11 - artigo sobre as impressões do autor com seu trabalho como anestesiologista
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Um comentário:

  1. Se o autor soubesse o que é acordar numa sala de recuperação, com dor do pós operatório, e quais são os resultados de ficar por tantas horas sem o alento da anestésico. A dor providencia, muitas vezes, o choro, o grito, o desespero, todo e qualquer desconforto fisiológico, a vergonha por não entender o que está acontecendo e até mesmo a desistência da vida. Acredito que se uma pessoa for cardíaca, passe dessa para uma melhor. A dor cansa, enlouquece, é algo sem tradução. Feliz daquele que é atendido por profissionais que respeitem e que cuidem com carinho os seus pacientes. Por esse motivo, posso afirmar que o trabalho em equipe é muito importante do início ao fim do procedimento, e que vai muito além da sala cirúrgica.

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